SAPATILHA MARROM – Episódio 1: BAILE DE FADAS – Paula Giannini

É fim de tarde.

Pela janela, flaina um dourado que, efervescente, parece derreter o sol em impalpáveis anjos de finíssima poeira. Logo abaixo, junto à parede, a caixa de sonhos repousa coberta desse mesmo ar, desse alaranjado que faz dela quase impalpável. Quase. Seria etérea, não fosse a aridez do local. Seria de sonho, não fosse aquilo que realmente é: caixa de papelão forrada de papel de presentes roído nas pontas.

Dentro dela, no fundo da caixa, resto eu. O último calçado. Jogado. Quase esquecido.

Aqui, meninas querem bonecas, batom, sapatilhas. E meninos… Meninos, sabe-se lá. Meninos querem chuteiras. Querem bola. Querem correr esfolando canelas, querem gritar rasgando os pulmões com um enfurecido urro que, por falta de palavra que se agarre nas mãos, veste-se de gol.

Aqui é assim.

Ou, ao menos, na maioria das vezes é. Ou ao menos assim os fazem acreditar que sim, desde muito pequeninos.

Assim é.

Ou não.

Acontece que bola não é calçado. Não. Não é. Bola não é calçado e a fita que a incrédula mão agora puxa não traz na ponta, atada a si, uma chuteira. Não traz chuteira. Mas, sim, sapatilha.

Sapatilha da cor marrom e de um número muito maior que o de seus pés, agora selo, sem me dar conta, o destino desta criança, tremendo um tanto entre seus dedos. A criança, esta que me tem em mãos, antes de se permitir insinuar um tímido sorriso, passeia o tato em disfarçado alívio pelo tecido esgarçado que recobre a superfície. A superfície de seu sonho. Vai sorrir, sei que vai, percebo, mas engole os próprios lábios ao dar-se conta que, para as aulas de dança, precisará primeiro da autorização da mãe.

Mãe?

Mãe, sim. E se não a tem, servirá o pai como alternativa.

O pai tem sim. A mãe também.

Mas, é meio assim como se não os tivesse, escolha ou outra, ambas resultarão em sentença de não. De não-vai-dar.

Não dá. Não vai dar não.  

Quase desiste de mim, devolvendo-me a caixa, não fosse a insistência da professora voluntária.

O pai de namorada nova, sabe Deus por onde anda. A mãe, sumida, figura difícil de se encontrar por aqueles lados. Ao menos quase. Ou quase sempre. E desde cedo. E desde sempre. Às vezes aparece e dá as caras. Às vezes vem. Só às vezes. E no Natal. Sempre assim. Mamãe Noel de poucos afetos e sem nenhum presente. Mamãe Noel sem tempo para o seu tempo de criança, com minutos apenas para um gole no espumante em taça de plástico. Ela vem, mas já partindo. Vem com o marido. Aquele velho. Aquele de sempre. O que não quer saber de nada com sua vida anterior, a da mãe, a da filha, a da mãe de sua mãe.

Ela vem.

Só no Natal.

Acontece que autorização não é coisa que se deixe adiar. Autorização não espera. Muito menos, até o final do ano. As aulas começarão no início do mês de junho.

E falta tanto. E falta muito. Duzentos dias para o dia do Natal.

Sem pai ou mãe, servirá assinatura de adulto outro qualquer. Um responsável. Um que assine. Pronto. Outro qualquer.  

Só tem a avó.

E essa serve. A avó é uma que sempre servirá. Sempre presente. Atenta. A avó não tem nada de um adulto qualquer. Ela é amor. A avó tem tempo para o seu tempo. Ao menos tenta. Acontece que ela não entende nada dessas coisas de letras. Não compreende o mundo das autorizações. Não entende. Nada.

Mas assina.

Desenha com os dedos tortos as únicas letras que conhece na vida sem dificuldade.

Eme-a-erre-i-a.

Maria escrita com a língua de lado.

Eme-a-erre-i-a.

Maria escrita em letra trêmula, mas forte, a tinta quase rasgando o papel. Os olhos quase um risco, os óculos tortos com as hastes presas à base de esparadrapo.

As mãos suando a responsabilidade da tarefa.

Maria assina. Quer que os seus saibam da vida mais que ela. E quer que aprendam. E, se não muito, ao menos um pouco, que um pouquinho só já é bem mais do que um dia ousou sonhar.  

Eme-a-erre-i-a.

Maria sonha.

Só o que quer é que os seus possam ser gente.

Quer que sejam felizes.

Que vivam.

Primeiro dia de aula.

Na mochila, enrolada em minha própria fita, pareço outra após os cuidados nas mãos de Maria. Pareço nova. Pareço bela. Mas, medida e remedida, sou bem maior que aqueles pés de criança. Ainda! Maria retruca entupindo minhas pontas com algodão.

Sapatilha marrom.

Cor-de-rosa não, que os pés de quem me calça combinam bem mais com a minha cor, que com rosados tons pasteis.

Uma sapatilha marrom.

Grande coisa.

Até parece que a cor do calçado fará diferença neste mundo de indiferenças. Aqui não faz. Aqui, não mesmo. Acontece que da porta para dentro aqueles que dançam serão todos iguais. Assim falou a professora. A voz tão firme, que volta agora aos ouvidos pequeninos em forma de coragem, conforta bem mais que o vexame do algodão que me enfiaram nas pontas.

Primeiro dia de aula.

Uma baderna.

A barricada na rua de cima fecha o trajeto até o barracão. O carro de polícia revista a passagem. Revistam seu short. Revistam cabelo. Reviram bolsos, mochila, tudo. Torno-me riso, motivo de deboches passada de mão em mão.

Depois das dez, o toque é de recolher, anunciam. Depois das dez. O aviso está dado. Depois das dez. Da noite. Acontece que agora, agorinha mesmo, ainda são sete.

E da manhã.

Me viram do avesso, os algodões jogados no lixo antes mesmo de eu dar provas de meu poder de conforto. Liberada, devolvem-me à mochila como se em gesto favor. A criança saliva. Ela ensaia resposta, mas engole o seco e o choro, naquela hora, até o pensamento se há de engolir.

Mas o sonho, não.

E nada de baderna, os policiais ainda avisam, meio assim como quem já condena.

E condenam.

Apontam, julgam, dão sentença, condenam. Pacote completo em um mundo de saltos mortais.

Nada de baderna.

Repetem ainda quando já cruzamos a esquina.

Baderna. Primeiro dia de aula, a professora ensina, não é aquilo de que falam os guardas. Não é. Ou ao menos não sempre.

Não foi sempre assim.

Baderna foi bailarina do final dos anos de 1800. Italiana, chegou ali mesmo, naquelas águas do Rio de Janeiro, de navio, cinquenta e cinco dias fechada em embarcação, enquanto lá fora quem dançava eram as águas do mar, e só. Eram tempos difíceis. A professora segue. Tempos difíceis… Como se estes dos dias de hoje assim não o fossem.

Baderna.

Veio ao Brasil contratada, acompanhada do pai e com honras de primeira-dama. De primeira bailarina – a professora corrige -, que entre a dama e a bailarina há um oceano a separar dois mundos. Artista é sempre artista, a mestra ri esquisito. Artista é sempre artista, mesmo aquelas que chegam com a alcunha de a primeira, ela se embola na própria fala, ainda mais estranha que antes.

Baderna. Foi trazida ao país por um maestro. O Gioachino. O Giannini. E a semelhança com o nome de violão leva a turma a risinhos abafados, solfejos nervosos entre a ansiedade e a decepção.

Não sabiam que para aprender balé teriam de engolir uma empoeirada aula de história.

Pliê, elevê, um, dois, três, sem grand jetés.

A primeira posição frustra a expectativa de quem sonha em sair já dançando os primeiros passos, saltando em piruetas pelo barracão. Balé é luta. Balé é lida. Para a professora, nada na vida é fácil não. Não é. E que coisa, que grande coisa, que novidade… Os alunos fazem muxoxo. A professora não. Segue corrigindo posturas, esticando braços, pedindo sorrisos e queixos levantados. Nem sempre a vida nos traz de pronto aquilo o que dela queremos. E se não traz, precisamos buscar, correr, arrancar da terra o que julgamos nosso por direito e sina. A dança segue.

O Gioachino – a história volta -, o tal com sobrenome de violão, foi, ele mesmo, um outro grande. Artista imenso sobrevivendo das aulas que às vezes se obrigava a ter de dar. Foi outro, sobrevivente da luta, da rotina, da lida.

Da arte.

Nem sempre.

Neste país, diz a mestra, artista não vive de seu talento, não. E se soa afetada, em meio ao silêncio esmagado junto ao breu em minhas solas, é que a professora voluntária, ali não fala só do maestro.   

Não fala.

Não mesmo.

E a aula segue.

Mas, para.

No meio.

Não há tempo para mais uma lição. Baderna. Do lado de fora, ela recomeça. Não a bailarina dos tempos distantes, mas aquela que vem dos tiros, dos vidros quebrados. Do medo que traceja o céu, devolvendo em caminho inverso, os tons de laranja ao seio da noite que se avoluma.

Vai precisar ficar mais um pouco. Esperar que a poeira se abrande, que baixe a fúria, que lá fora o mundo aquiete.

Baderna.

E entre pliês e elevês, antes de aprender sobre o Baile de Fadas, espetáculo de estreia da bailarina por quem os pequenos dançarinos já se apaixonam. Antes da estreia como solista, ali mesmo, no centro de um Rio de Janeiro de há mais de século, os pés que me calçam olham ao redor. E eu também. Naquele momento, criança e sapatilha somos corpo único a respirar a atmosfera da ilusão que se ameaça evaporar.

Os pés me elevam. Bem alto. Olha só o que eu consigo fazer.  

E só então, dou-me conta do que sou. Só então, dou-me conta de verdade… Em meio a dezena de calçados nos pés das meninas, sou única.

A única.

Sapatilha marrom a equilibrar-me nos sonhos dos pés de um menino.

10 comentários em “SAPATILHA MARROM – Episódio 1: BAILE DE FADAS – Paula Giannini

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  1. Adorei o conto ou primeiro episódio de “Sapatilha Marrom” uma linda e muito carinhosa homenagem a bailarina clássica Marietta Baderna, que maravilha não importa o gênero do bailarino, importa o amor a arte, Baderna foi o máximo do máximo, a história mostra um menino bailarino, fantástico.
    Muita emoção esse conto trás ao meu coração ❤

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  2. Ode à Arte que nos eleva na vida, mesmo sofrida, no anonimato. Seu conto é um poema de amor e respeito. Te amo, mas não só por isso, mas também. Obrigada por tecer palavras como quem dança pelo palco desse mundo caótico. Beijos e abraços carinhosos.

    Curtido por 1 pessoa

  3. Que beleza de conto, uma homenagem à Barderna, aos artistas. Um texto que fala de tanta coisa, que traz à tona tantos assuntos importantes. Que maravilha. E a descoberta de ser um menino, o bailarino. Apaixonada por essa história. Beijos e parabéns.

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