SAPATILHA MARROM – Episódio 3: LUNDUM D’AMARROA – Paula Giannini

Tiro certeiro. De bala perdida. Tiro sem rumo vertendo sangue e manchando tudo. Tudo. Primeiro, a roupa da avó, branca, e o vermelho brotando aos poucos, incerto, cor-de-rosa, quase como se não quisesse transbordar, como se não viesse. Mas vem. Aos poucos. Um fio. E logo, súbito, vem farto. Escuro. Pingando e pintando o chão. Depois, em jorros de dor e medo, colorem as paredes da ruela tão estreita, e as mãos do menino, seus braços, ombros. Seu desespero. E, aos borbotões, mancham os cabelos, de um grisalho antes amarelado, daquela avó a quem tanto ama, o zíper da mochila, as alças, a bolsa toda e, logo, suas roupas do balé encharcadas.

E eu.

Eu.

Nos minutos que de si se fazem séculos, nos minutos que não voltam, segundos que se perpetuam e ficam. Para sempre. Eu, já não marrom, mas rajada de digitais em bordô, na procura desajeitada pelo aparelho de celular. Pelo socorro que custa a vir.

Por socorro que não virá nunca.

Nunca.

E a avó morre.

Morre.

Não de bala perdida, que essa lhe perfurou a panturrilha e só.

Não.

A vó morre. De descaso.

De olhos fechados. De falta de socorro. De demora, de infecção, de falta de remédio no postinho de saúde. Ela morre de infecção. E de destino. O de Maria.

O da falta de leito nos hospitais.

O da falta de destino para os de sina de Maria.  

A avó morre.

Sobre o caixão, já não tão lassa quanto um dia fui, repouso como flor sem perfume.

Repouso eu.

Não que me vá com ela.

Não. Não irei.

Mas, me metamorfoseio em um tipo de símbolo da dor de meu menino. Agora ele se vê órfão, abatido com a perda de sua mãe-duas-vezes. Dona Maria foi pai, e foi mãe, e amiga. E foi avó. Foi esteio e mão que ampara, foi riso e bronca, foi presença no vazio, foi tudo e mais para o rapaz de pescoço alongado que se curva sobre a tampa de madeira tão simples.

Mão no ombro.

E o menino ergue a face.

A professora.

Eu a vejo. Chega seguida da dezena de Marias outras. Suas bailarinas. E o velório se volta todo. Um por um em ridícula coreografia, aos cochichos. Pequenas bocas a maldizerem do que será dele, menino de sapatilhas marrons.

Baderna muda. Reboliço de preconceitos. O velório se volta todo. Mas, para mim, e para meu menino, o funeral se transforma em aula, ou, ao menos, a memória de uma que já houve. Uma de tempos melhores.

De balé. De amor. De história.

A história da outra Maria. A Baderna. Também ela alquebrada pela morte de seu esteio. Seu pai.

Tão jovem.

Quando perdeu seu pai para a febre amarela, Marietta nada pôde, viu-se órfã em um mundo doente. E hostil. Viu-se só. Artista. Mulher. Estrangeira. Quase posso enxergar sua dor, através da dor nos olhos do jovem bailarino sem chão que possa sustentar seus sonhos. Sem desejos de saltos e piruetas, ele me aperta no peito enquanto sua avó é guardada em gaveta de cemitério para nunca mais.

— É a ordem natural das coisas — ele ouve da última das tias a lhe abraçar e a deixar o local —. Nada do pai ou da mãe. Não apareceram. Não aparecerão. Ao menos, não por ali. Ele voltará para casa sozinho. E terá que se virar. Também sozinho. Ou quase. Na vida se nasce, cresce e morre assim… O menino aprende cedo. Mas, nem tanto. A professora está ao seu lado. Vai fazer sopa e lhe ensinar sobre a vida. Vai contar sobre uns rebolados e requebrares outros. Uns que não fazem parte do cardápio da dança clássica. Mas que são lindos e que a Baderna conhecia. A bailarina escandalizou a sociedade de sua época na malemolência das gentes pretas, dançando no palco, ousadia imensa, seu Lundum D´Amarroa, dividindo a multidão de seus fãs ao meio. De um, lado o preconceito; do outro, a admiração.  

Cisão precoce na ponta dos pés de uma ousadia.   

A oitocentista era assim. Não tinha medo das bocas, não tinha receios das vaias, dos gritos, dos dedos apontados ou das falas maldosas escorridas entre os dentes.

E o rapazinho quase sorri, pensando na cara dos vizinhos ao verem aquele bando de bailarinas, anjos de asas puídas adentrando com seu passo leve o altar em que se expõe a morte. Desfilando pelas ruelas, desafiando a sina que supostamente destina que elas, Marias da periferia, sejam forjadas apenas para a lida bruta. Pássaras de asas que, mesmo quando feitas para as delicadezas e sonhos do mundo das artes, serão abatidas antes mesmo do primeiro impulso. Marias com penas de não voar.

Não foram feitas para o voo.

Mas, teimam.

O menino sorri.

A procissão avança. Quase dança, serpenteando por entre os labirintos da comunidade.

Não é Maria. Mas adora estar entre elas.   

É quase a Baderna com seus fãs batendo firme com os pés no chão.

Ele sorri.

A gente pode sorrir, mesmo na dor. Ele aprende a lição do dia.

Sorri.

E é sorrindo que mete a mão no bolso, e depois na chave que abre o trinco de maçaneta quebrada. E é, ainda sorrindo, que percebe a luz, apagada ao sair, acesa e acompanhada de um cheiro e uma calmaria tão estranha àquele lar.

A Professora para. Não vai se atrever além da soleira, ao intuir, experiente, a coreografia do passo que em seguida virá.

Sobre a mesa, o menino me deposita, sapatilha que logo se aposentará, aqueles pés estão crescendo. No silêncio imenso, até seu suspiro se pode escutar. Mas a respiração fica logo suspensa pela surpresa do tiro. Não o de bala. Mas o do grito. O do tapa sobre o tampo da mesa que me faz voar e bater na parede.

Da cortina que separa sala e cozinha, surge o pai.

— E filho dele… — a voz é fina, anasalada, não condiz com o tamanho daquele corpanzil. — O filho dele… — A voz não se parece com a força de sua mão.

O menino amarroado. Mas o pai não sabe nada dessas coisas de palavras difíceis, antigas. Amarroar, o menino já sabe, é bater com um marrão.

Amarroado é se partir.

Alquebrado.  

O pai avança.

— Filho dele não vai dançar coisas de mulherzinha! 

(Continua)          

Episódio 1: Baile de Fadas

Episódio 2: O Naufrágio

3 comentários em “SAPATILHA MARROM – Episódio 3: LUNDUM D’AMARROA – Paula Giannini

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  1. Oi, Paula.

    Neste terceiro capítulo do conto, há uma imagem muito feliz, em minha opinião: as bailarinas acompanhando o cortejo a caráter. Considerando o espaço ficcional em que ocorre (a periferia, onde os preconceitos contra o feminino são mais fortemente expressos) e o mote do enredo (um menino que gosta de balé e tem talento para isso), ficou muito bom, literariamente falando. Isso, aliado a uma característica de seu estilo, certa ambiguidade poética na construção das frases, faz deste terceiro capítulo um momento muito bom do conto.

    Parabéns.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Querido Eduardo,
      Obrigada por seu carinho e incentivo. Fico muito feliz com suas palavras, principalmente por admirar tanto sua escrita.
      Beijos
      Paula Giannini

      Curtido por 1 pessoa

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