ILUSÃO DO HOMEM – UM PÉ DE QUÊ? – Paula Giannini

O tempo é ilusão do homem

E as fronteiras, riscos em mapas que não existem

Cláudio Iovanovitchi

Cerca de 600 mil ciganos vivem hoje no Brasil. Os números são imprecisos, pois mesmo sendo este um dos povos formadores do processo civilizatório brasileiro – kalons aportaram por aqui junto às naus capitânias em 1574, segundo Rodrigo Correa Teixeira em seu A História dos Ciganos no Brasil –. O povo cigano jamais figurou em recenseamentos do IBGE, contrariando o aconselhamento do Ministério Público Federal em 2018 para que as etnias romani e kalon fossem incluídas no recenseamento de 2020.  

Invisíveis, essas populações teimam em existir no imaginário popular apenas como um mito. Ladrões, bandoleiros, boêmios, sequestradores de crianças, ladrões de criancinhas, subtraindo galinhas e roupas dos varais dos cidadãos de bem. Dissimulados, bruxos, enganadores, são apenas algumas das alcunhas que podemos encontrar na fala dos brasileiros e, pior que isso, na literatura universal, em filmes e jornais.

Se por um lado, aquilo que se desconhece é temido, por outro, aquilo que teimamos em não enxergar se torna aos poucos em lenda.

Em mito.

E mito é coisa que não existe. Mito é folclore. Mito é lenda. Mito é…

Mito.

Assim, o povo cigano segue invisível, invisibilizado e, consequentemente, estrangeiro dentro de sua própria pátria. Ciganos nascidos no Brasil são brasileiros acima de tudo. No entanto, não contam com políticas públicas específicas de inclusão, de educação, de saúde e as peculiaridades de sua cultura não são levadas em conta por aqueles que pensam as leis em nosso país.

Ser cigano não é fazer parte de uma religião ou seita, não é ser obrigatoriamente nômade, tampouco figurar em um grupo folclórico.

Ser cigano é pertencer a um povo com identidade cultural, língua e costumes próprios.

Ser cigano é ser brasileiro.

E o que significa ser brasileiro?

Penso que a invisibilidade do povo cigano, ainda, em pleno Século XXI, em nosso país perpassa a dificuldade que temos do entendimento do que somos. Múltiplos, formados por inúmeros povos e culturas, muitas mais do que costumamos enxergar… E pensar “os assim chamados ciganos” como brasileiros de direito e de fato é reconstruir nossa visão de mundo e de nação. Uma reconstrução profunda, que passa pelos livros de história, pela aceitação do outro, e mesmo pela nossa própria autoaceitação.

Dia desses, assisti à entrevista da escritora Marília Kubota e me surpreendi com sua fala de que as mulheres orientais se sentem estrangeiras em sua pátria, o Brasil.

O mesmo se dá com romanis, kalons, os árabes, os turcos, e terá acontecido certamente como cada imigrante — e agora refugiado — que aqui chegou, deixando seu mundo para trás, obviamente em situações e necessidades extremas, e adotando o Brasil como o lar de seus descendentes.

Somos múltiplos, e só assumindo esse aspecto primordial de nossa cultura é que nos encontraremos, enfim, com nossos espelhos.   

Eu conversei com Cláudio Iovanovichti. Amigo cigano, pesquisador em meu mais recente livro infantil Zumi Barreshti: Sopa de Pedra, integrante do subgrupo rom, residente em Curitiba, ator, produtor e articulador cultural, além de um incansável defensor dos direitos de seu povo, hoje presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana. A conversa, garanto, vai encantar e surpreender quem aceitar o convite da leitura.

***

Quem são os ciganos?

Ciganos não existem. Cigano é um termo pejorativo que a sociedade nos deu. Assim como chamamos índios de índios… Eles não se reconhecem assim, eles são guaranis, ianomamis, xetás…  Da mesma maneira, ciganos não existem. Somos Rom e kalons. Roms, vindos do leste Europeu e kalons, os ibéricos, que vieram para o Brasil na época do descobrimento, mas todos de uma mesma origem, provavelmente na Índia.

O que caracteriza um cigano?

Somos o povo mais alegre do planeta, apesar de tudo… Para um cigano, o tempo é ilusão e as fronteiras não existem, são penas riscos em mapas que não existem. Não temos território, mas nunca pegamos em armas ou em bombas para conquistar um. O cigano vive o aqui e o agora, o cigano mais rico é o que mais gastou e não o que mais guardou, porque, quando se morre, mais vale ter sido um cigano que um rei. Quando você morre, pode deixar um velho carroção ou um grande império. E por um velho carroção ninguém briga, mas, por um grande império, irmão mata irmão.  Outra coisa… Nosso povo, no Brasil, noventa por cento são analfabetos, uma vergonha nacional… Mas, você nunca vai ver um velho cigano abandonado em um asilo ou uma criança cigana em um orfanato. Não tem. O nosso velho é nossa biblioteca, e nossa criança, o nosso futuro. Quando um velho cigano morre, com ele morre um biblioteca oral de sabedoria.

Noventa por cento de analfabetos

Veja bem, temos duas desgraças… O CEP e o IBGE… Embora o nomadismo não seja próprio de nossa cultura em sua origem, os governos nos fizeram nômades com a cultura do “faça-o caminhar”. Cigano bom é cigano longe de mim. Então, todo mundo pensando assim, é cigano longe de todo mundo. Nossa sociedade explica o nomadismo romantizando um povo que “adora dormir ao relento” e viver na estrada. Quem é que adora dormir ao relento? Fantasiam a desgraça… Tornam lúdico o que é sofrimento. As cidades expulsam os ciganos que acampam nas praças, então, sobretudo os kalons, ficam três ou quatro dias nas cidades e assim, as crianças ficam fora das escolas, as populações perdem os direitos, por exemplo, de utilizar os serviços de saúde pública. Porque não têm CEP, comprovante de endereço. Minha luta é pela formação de professores na nossa cultura cigana, o direito à educação à distância… Aqui no Paraná já existem alguns professores com esta formação, graças a um esforço que fiz junto à Secretaria de Educação, mas, a realidade ainda está longe de ser modificada, embora seja algo tão fácil de fazer.   

Do que vive um cigano

Outra questão importante: volto a insistir no CEP, é a certidão de nascimento… Se você não tem CEP, você não é brasileiro… Então, a questão cultural se choca com as lacunas burocráticas. Eu achava que para ser brasileiro era só nascer no Brasil. Mas, não é… Você me pergunta do que vivemos… Leitura de sorte é um modo de ganhar a vida. Eu não acredito em leitura de sorte… Acredito em energia positiva, isso é ciência, todos temos esse dom. E aquela cigana toda suja e analfabeta que faz você fugir quando se aproxima, aprendeu a desenvolver essa sensibilidade de lhe dizer coisas que você quer ouvir. Ela sente a sua energia, em troca de algumas moedas… E a grande maioria dos homens são comerciantes de porta em porta… Os ciganos criaram os circos no Brasil, só que ninguém conta. Eu, por exemplo, faço teatro, e criamos uma peça de teatro onde uma cigana conta histórias da tradição oral cigana para crianças e nos apresentamos nas escolas. Chama-se Lendas Ciganas.   

Lendas Ciganas

Ignorância gera preconceito que gera discriminação e que culmina na exclusão. Então, criamos uma peça onde o mais importante é o final… porque, no desfecho, as crianças correm para beijar a cigana, e não “correm da cigana”. E fazemos em pátios, escolas… Em praças… Nas cidades pequenas, onde os ciganos costumam acampar. Com a pandemia, fizemos na internet. Aquele teatro de cadeira de veludos, no Brasil, é algo distante da maioria da população, das cidades. Fazemos em pátios, as crianças sentadas no chão… E a peça acontece e agrada como se estivéssemos em um teatro com poltronas de veludo. Mas o importante, insisto, é que as crianças vejam os ciganos como alguém igual a elas, porque na literatura os livros de leitura obrigatória no vestibular, por exemplo, só o que fazem é assinar embaixo da visão de preconceito…

Preconceito na literatura universal

A nossa história ainda não foi contada… O primeiro livro é esse que você fez. Você teve coragem e fez… Cultura de paz é entender o outro e se colocar no lugar do outro. É enxergar o outro… Chegamos no Brasil junto com as naus capitânias com as orelhas cortadas, e nosso processo civilizatório é índia com negro, negra com índio, índio com branca, com cigana, com judeu, com árabe, e com todos os outros que vieram depois. Somos uma colcha de retalhos. Esse é o nosso processo civilizatório. Então, veja bem… Memórias de um Sargento de Milícias, por exemplo: “Com os emigrados de Portugal veio também para o Brasil a praga dos ciganos, gente ociosa, de poucos escrúpulos, bandidos, vândalos, assaltantes e ladrões. De sua cultura que tanto se fala, deixaram-na lá para as outras bandas do oceano. Para cá só trouxeram velhacaria e maus hábitos”. Ou então… O Caboclo e a Cigana: “A Cidade Marruás vivia infestada com aquele bando de ciganos. O padre apavorado com aquela maldição ao relento, as crianças aprendiam a roubar antes mesmo de nascer-lhes os dentes”.  Então, Paula, é uma luta desigual, não se trata de invalidar os livros que já existem, mas de oferecer outros pontos de vista. E isso ainda não foi feito. Ou está começando agora, com Zumi Barreshti…     

E o futuro?

A única saída que temos é a educação. Letras, para que os ciganos tenham noção de seus direitos, para que nossas crianças possam se defender sem lendas e mitos imaginados e criados… Sem preconceito ou medo. Sabendo que são brasileiros e que têm tantos direitos quanto todos os outros que nasceram neste território.


A ilustração tema desta entrevista é de Fil Felix, autor-ilustrador de Zumi Barreshti: Sopa de Pedra

Para conhecer o livro: http://www.zumibarreshti.wordpress.com/

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