BREVE PASSEIO PELAS HQs: A ERA DE OURO DOS QUADRINHOS – Fil Felix

Apesar de as histórias em quadrinhos também serem chamadas de “arte sequencial” ou a “9ª arte”, no mundo real elas ainda são taxadas como a prima pobre das artes “de verdade” (assim como da literatura). E como sou super fã, vira e mexe escrevo sobre elas aqui em Os Imaginários para ajudar nessa desconstrução, mostrando um pouco sobre sua versatilidade, assim como seu potencial.

Hoje vou iniciar uma série de artigos que vai comentar os principais períodos das HQs. Assim como a História da Arte é dividida a partir de períodos e movimentos (como Renascimento, Modernismo, etc), a história dos quadrinhos possui quatro grandes “eras”: a Era de Ouro (1938-1956), a Era de Prata (1956-1970), a Era de Bronze (1970-1984) e a Era Moderna (1985- atualmente).

Nesse primeiro artigo vamos falar um pouco do cenário das tirinhas de jornal, que pavimentaram o caminho para o surgimento das primeiras revistas em quadrinhos e a criação e consolidação do gênero “super-herói”, dando início à Era de Ouro a partir da estreia do Superman em 1938.

Contar uma história através de uma sequência de quadros é algo bastante antigo, se pegarmos por exemplo os trípticos da Idade Média, aqueles conjuntos de três quadros que costumavam narrar um conto bíblico. A arte japonesa também tem seus exemplares, como a arte shunga a partir do século 17, cujo alguns exemplares funcionavam como pequenos livros didáticos e ilustrados. Já os quadrinhos como conhecemos hoje tiveram sua origem nas tirinhas de jornal que surgiram em meados do século XIX, produzidas a partir de poucos quadros, traços e cores em preto e branco, com histórias geralmente voltadas à comédia. A partir de 1920, nos EUA, as tirinhas de jornal ganharam maior popularidade e passaram a abordar grandes aventuras, além de uma continuidade, ou seja, a tirinha da semana seguinte exploraria melhor a personagem/ história ou traria um capítulo novo.

Foi da década de 1930 que o conceito de “revista em quadrinhos” ganhou força, quando revistas compilando tirinhas de jornal passaram a ser lançadas, abrindo espaço para que fossem criadas revistas em quadrinhos totalmente novas, o que nos leva à icônica Action Comics #1 (1938) – a primeira publicação do Superman – que além de estabelecer a questão de periodicidade, também abriu portas para o gênero de super-herói, que dominou (e continua dominando) o mercado dos quadrinhos durante as décadas seguintes. Enquanto as tirinhas geralmente contavam com um autor só (que tanto escrevia quanto desenhava), as revistas em quadrinhos passaram a ter uma equipe maior, como autor, desenhista e colorista. Devido à quantidade de páginas (que chegavam a 100) e à periodicidade (às vezes semanal), essa divisão do trabalho ajuda a manter o ritmo acelerado. Confira um pouco sobre o que marcou a chamada Era de Ouro dos Quadrinhos.

Action Comics #1 (1938)

A revista Action Comics #1 é considerada o grande divisor de águas no universo das HQs, trazendo a estreia do Superman, criado pela dupla Jerry Siegel and Joe Shuster. Dessa forma, definiu-se não somente o gênero de super-herói, como desenvolveu-se o que viria a ser o modelo ideal de heroísmo, envolvendo tanto caráter, poderes de um deus e um certo nacionalismo, que é o próprio Superman. Publicada na época pela editora Detective Comics, essa primeira edição é tão importante e simbólica que um exemplar original foi vendido, por exemplo, por 3 milhões de dólares num leilão em 2014, se tornando a edição em quadrinhos mais cara até então. Também é uma das mais antigas ainda em publicação: em 2018 chegou a incrível edição número 1000!

É interessante comentar que a revista Action Comics funcionava como uma antologia, reunindo várias séries em cada edição, sendo a do Superman uma delas. Nos primeiros dois anos da revista (1938-1940), alguns personagens bastante importante do heróis também marcaram sua estreia, como a Lois Lane e o arqui inimigo Lex Luthor. Também foi nesse período que conhecemos mais os poderes do Superman, como superforça, visão de raio x e raios lasers. O sucesso do Superman na revista Action Comics foi tanto que a a Detective Comics e a All American Publications (as duas editoras que mais tarde se uniriam como DC) publicaram dezenas de revistas, assim como alguns dos principais heróis e vilões de todos os tempos durante os anos seguintes, como Batman (1939), Robin (1940), Coringa (1940) Flash (1940), Mulher-Maravilha (1941) e Aquaman (1941), dentre muitos outros.

Um outro fato bastante interessante para quem não conhece tanto de HQs é que essas personagens, apesar de criadas por escritores e desenhistas, pertencem à editora (o que já gerou muita polêmica). Ou seja, cada escritor fica na revista durante um período, que pode ser de 6 meses a 3, 5 anos (o que chamam de “fase”) e assim que o escritor deixa a revista, um outro entra no lugar e dá continuidade ao trabalho, culminando hoje em cerca de 80 anos de histórias que formaram a mitologia desses heróis.

Capitão América #1 e a II Guerra Mundial (1941)

A Segunda Guerra Mundial durou entre 1939 e 1945, momento que redefiniu a história dos EUA, como o surgimento do famoso “american way of life” (“modo americano de viver”, em português). E os quadrinhos também sofreram grande influência da guerra. Além do Superman, que incorporava os grandes valores norte-americanos, em 1941 surgiu o herói que se tornaria o símbolo do patriotismo: o Capitão América, criador por Joe Simon e Jack Kirby. Devido ao sucesso das revistas da Detective Comics, várias editoras rivais tentavam emplacar seus heróis. A Timely Comics (que mais tarde se tornaria a Marvel) foi uma dessas editoras, criando heróis como o Tocha Humana (1939) e o Namor, o Príncipe Submarino (1939) e Capitão América (1941).

Essa relação com a guerra e o patriotismo eram evidentes: a capa de Capitão América #1 trazia o herói em seu clássico traje nas cores da bandeira dos EUA, dando uma porrada em Adolf Hitler. O sucesso foi tão estrondoso que a editora chegou a lançar duas novas edições por semana (algo praticamente inviável hoje em dia), com cada uma chegando a vender mais de 1 milhão de cópias. O preço e o apelo ao público jovem consolidou o gênero de super-herói e marcou as histórias em quadrinhos como produto de entretenimento e pop.

MAD e Tio Patinhas (1952)

Bom, nem tudo é sobre super-herói, né? O momento pós-guerra foi marcado pela estreia de outras duas revistas que marcaram a Era de Ouro dos quadrinhos. Começando pela revista MAD da editora EC Comics, que estreou em 1952, voltada ao humor e que trazia sátiras do universo da cultura pop e cenário político, além de paródias de filmes e programas de TV. O mascote Alfred E. Neuman passou a estampar todas as capas da revista anos depois, se tornando uma de suas marcas registradas. O sucesso da MAD inspirou diversas outras nesse mesmo formato, assim como ganhou uma versão brasileira! A MAD Brasil estreou por aqui na década de 1970, quando traduzia material estrangeiro e também publicava material nacional inédito, com o cartunista Ota já à frente do projeto.

A MAD também funcionava como uma alternativa mais jovem-adulta aos super-heróis, abordando e ironizando o próprio “american way of life”, sendo bastante transgressora. Como curiosidade, ela se manteve até 2018, com mais de 500 edições seguidas. A partir desse ano ela passou por alguns problemas e chegou a ser reformulada, chegando a publicar materiais especiais ou republicações.

Durante esse período os quadrinhos licenciados da Walt Disney também fizeram sucesso. Pato Donald já protagonizava tirinhas na década de 1930, ganhando revista em quadrinhos própria, mas um outro dado curioso é que as revistas Disney, apesar de publicadas em dezenas de países e escritas por autores de cada um deles, encontrou na Europa (mais precisamente na Itália), o seu grande lar. O Brasil também é um dos países que mais desenvolveu histórias de personagens Disney, algo que praticamente não ocorre com personagens das editoras DC e Marvel. Pato Donald, por exemplo, teve sua estreia por aqui em revista própria em 1950 pela editora Abril, sendo publicada até 2018 quando a Abril passou por uma reformulação e cancelou toda a linha Disney.

Em 1952 estreava nos EUA, na revista Four Color Comics, o avarento Tio Patinhas, escrita pelo icônico Carl Barks, considerado um dos mestres da Disney. Barks chegou a escrever personagens ligados ao mundo do Pato Donald de 1942 à 1966, sendo o responsável pela criação de toda Patópolis e de seus principais personagens, como o próprio Tio Patinhas, os Irmãos Metralha, a Maga Patalójika, Professor Pardal, dentre tantos outros, apelidado de O Homem dos Patos.

Com a saturação do gênero de super-herói, muitas HQs da Disney chegaram a ultrapassar, em número de vendas, as revistas concorrentes, que vinham se adaptando durante a década de 1950 para manter a atenção dos leitores (que envelheceram junto dos títulos), passado uma década após o estrondo de Superman, seja testando novos gêneros como o horror e a ficção científica, ou simplesmente cancelando determinadas revistas e criando novos personagens. Aliás, essa constante demanda por manter seus leitores ativos continua um desafio até hoje.

Comics Code Authority e a Censura (1954)

O Comics Code Authority foi uma série de regulamentações criada pela Comics Magazine Association of America e que surgiu em 1954, marcando o início do fim para a Era de Ouro dos Quadrinhos. Tudo devido ao livro Seduction of the Innocent (A Sedução do Inocente, em português) também de 1954, escrito pelo psiquiatra alemão Fredric Wertham onde detonava as revistas em quadrinhos. Para ele, não passavam de histórias ruins, com sexo, crime e drogas, uma má influência para os jovens, com poder de gerar uma geração de delinquentes. A repercussão foi tão grande que as associações de pais forçaram as editoras a criarem um código interno para se auto-censurarem, editando tudo o que era produzido.

Isso afetou principalmente as revistas de horror ou conteúdo mais adulto. Foi nesse período, por exemplo, que a MAD mudou seu formato para o de “magazine” (maior que a revista tradicional), fugindo do Código. O próprio Congresso norte-americano chegou a investigar o caso! As revistas vinham com o selo do Comics Code Authority em suas capas, indicando que haviam passado no teste das editoras. O Brasil também criou algo semelhante, o tal do Código de Ética, adotado pelas principais editoras durante a década de 1960, estampando na capa frases como “aprovado pelo código de ética”.

O Código dizia o que podia e o que não podia ter tanto em texto quanto em arte nas revistas. Decotes, violência e até monstros eram censurados. Histórias antigas que eram republicadas tinham sua arte até mesmo reformulada. Veja abaixo um exemplo de como a censura agia: à esquerda, uma cena publicada em 1953 na revista Witch Tales #21 em 1953, quando não havia o código; à direita, quando a história foi republicada em Race For The Moon #1 de 1958, pós-código. O final foi alterado, os alienígenas tiveram a forma alterada, qualquer violência foi retirada, dentre tantas outras mudanças.

Com os heróis em decadência e o sucesso das revistas de horror e investigação atingido pela censura, o mercado de quadrinhos sofreu um grande baque, gerando o fim da Era de Ouro em 1956. Aliás, o termo “Era de Ouro” foi cunhado em 1960 no fanzine Comic Art. A era seguinte, a de Prata, marcou o renascimento do gênero de super-heróis e a abordagem mais humana de muitos deles a fim de aproximar mais o leitor. Vale comentar que o Código de Censura continuou a existir oficialmente até meados dos anos 2000! Apesar de ter perdido a força com o passar dos anos, sendo deixado de lado, a Marvel só deixou de usá-lo em 2001, enquanto a DC fez o mesmo em 2011, marcando verdadeiramente o seu fim!

O universo das HQs é gigantesco e movimenta milhares de artistas ao redor do mundo. Apesar de o gênero de super-herói ser considerado a base e o principal foco do mercado, há histórias de tudo quanto é tipo publicada em todo lugar. Só para se ter uma ideia, em 2015 eram publicadas mensalmente cerca de 450 revistas só nos EUA! Aqui vimos apenas o seu início, espero no próximo artigo comentar os principais marcos da Era de Prata (1956-1970).

Outros pontos importantes da Era de Ouro dos Quadrinhos (1938-1956):

  • A partir da estréia de Superman em Action Comics #1 (1938), a base do gênero de super-herói foi consolidada, gerando uma nova leva de heróis com identidade secreta, superpoderes e uniformes coloridos.
  • A venda de HQs nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial foi enorme, tanto devido ao seu custo baixo quanto aos temas abordados, geralmente com teor patriótico, como o Capitão América (1941).
  • Wonder Man#1 (1939) é considerada o primeiro plágio dos quadrinhos. Escrita por Will Eisner a pedido da Fox Feature Syndicate, é praticamente uma cópia do Superman. A editora queria um herói que seguisse o sucesso da rival, mas acabou sofrendo um processo e cancelando a revista.
  • Will Eisner lançaria The Spirit em 1940, um vigilante mascarado que combatia o crime em histórias policiais do tipo noir, envolvendo detetives, mistérios, terror, romance e até comédia, inovando em texto e arte, redefinindo o gênero. Ao longo da carreira Will Eisner publicou outros clássicos e o maior prêmio da industria de quadrinhos nos EUA, o famoso Oscar das HQs, leva o seu nome: o Eisner Awards.
  • Archie Andrews estreava em 1941, ganhando a série Archie Comics em 1942, se destacando por trazer histórias protagonizadas por adolescentes sem superpoderes ou heróis, como o próprio Archie, Betty Cooper e Veronica Lodge, que continuam em publicação até hoje. Nos anos 1960, a editora Archie Comics publicaria outros dois sucessos: Josie e as Gatinhas e Sabrina, Aprendiz de Feiticeira.
  • Seguindo os passos das primeiras revistas em quadrinhos dos EUA, aqui no Brasil era lançada em 1939 a revista “Gibi“, que continha inicialmente uma série de tirinhas como Charlie Chan, Brucutu e Ferdinando da Família Buscapé, publicada pelo Grupo Globo. O sucesso de Gibi fez com que o seu nome se tornasse sinônimo de revistas em quadrinhos no nosso país.
  • Muitos personagens que nasceram nas tirinhas de jornal na década de 1930 também ganharam força durante a Era de Ouro. É o caso do Fantasma, o herói mascarado que dependia apenas da sua inteligência e força, sem superpoderes, pra enfrentar criminosos em Bangalla, criado em 1936 por Lee Falk, também criador do ilusionista Mandrake de 1934. Flash Gordon também surgiu em 1934 pelas mãos de Alex Raymond, se tornando referência para o gênero de space opera, mostrando as aventuras de Gordon pelo planeta Mongo.
  • Os gêneros de terror, ficção científica e fantasia também tiveram diversos títulos de notoriedade durante o período, em especial as publicações da editora EC Comics, como Tales From The Crypt (Contos da Cripta no brasil) que foi publicada entre 1950 e 1955 como uma antologia de histórias de terror, muitas adaptadas até hoje. Outras antologias como Weird Fantasy e Weird Science também fizeram sucesso. A censura do Comics Code Authority afetou muito a EC Comics, que interrompeu praticamente todas as suas publicações, culminando em sua venda para a DC anos depois.

4 comentários em “BREVE PASSEIO PELAS HQs: A ERA DE OURO DOS QUADRINHOS – Fil Felix

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  1. Olá, Fil! Muito bacana o seu artigo. Como fã de HQ que sou, vibrei com a sua abordagem sobre a era de ouro. Talvez seja interessante desdobrá-la em um segundo texto, dessa vez abordando o imenso mundo para além dos super-herois que sobreviveram até hoje. Nos anos 1930-1940, a vibe era um tanto diferente, apesar da existência do Super-Homem e do Batman e mesmo dos personagens da Disney. Na época em que se publicavam edições do “Gibi Semanal” três vezes por semana e do “Globo Juvenil”, na mesma batida, o que chamava a atenção da gurizada eram personagens como o Fantasma, do Lee Falk; o Flash Gordon, do Alex Raymond; o Príncipe Valente, do Hal Foster; o Ferdinando Buscapé, do Al Capp; e, claro, o maior de todos, o Espírito, do Will Eisner. Acho que seria bacana um artigo seu sobre esses personagens e seus autores. Deixo aqui minha sugestão renovando os parabéns pelo texto acima. Um abraço.

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