QUER VER? ESCUTA – Paula Giannini

“às Sereias chegarás em primeiro lugar

que todos os homens se enfeitiçam, que delas de aproximam

quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias

ao lado desse homem, nunca mulher e os filhos estarão

para se regozijarem com o seu regresso

mas as Sereias o enfeitiçam com seu límpido canto

sentadas em um prado e a sua volta

estão amontoadas ossadas de homens decompostos

e suas peles marcescentes

prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros cera doce

para que nenhum deles as ouça

mas, se tu próprio quiseres ouvir o canto

deixa que na nau veloz te amarrem as mãos e os pés

enquanto estás de pé contra o mastro

e que as cordas sejam atadas ao mastro para que te possas deleitar com a voz das Sereias

e se a elas ordenarem que te libertem

então, que te amarrem com mais cordas ainda”

(Canto XII – Odisseia de Homero)

Quando eu era jovem fiz uma tatuagem. Decidi pousar o pequeno pássaro em meu tornozelo, menos para marcar as asas em mim que para agradar a alguns e, obviamente, desagradar e desafiar a outros, meus pais.

Que sei eu da menina que eu era ou fui?

Mudamos tanto durante nossa jornada, somos tantos e tão outros em diferentes momentos da vida — aqueles que têm a sorte da longevidade — que às vezes vamos deixando pedaços nossos esquecidos pelo caminho. Por vontade própria — ninguém me obrigou àquilo — ou não, o fato é que o passarinho, finamente desenhado em canetinha de ponta fina, prometia bem mais no rascunho que aquilo que se materializou na lateral de meus pés. A aprisionada ave em minha pele, com cores de decalque de chiclete, feita com três agulhas fixadas na ponta de uma caneta esferográfica — aquilo doeu muito — era uma tosca representação do que eu sonhara no mundo das ideias. Ficou feio. Ficou grosseiro. Horroroso. Um desastre. Fosse a marca, quem sabe, um rito de rebeldia e iniciação da menina de quinze anos que um dia fui, apenas uma tatuagem de chiclete, eu passaria o dedo molhado em cuspe sobre ela e a borraria até apagar a falta de talento do tatuador de minha pele.

De minha memória.

Dias depois, munida de inocente convicção de esconder transgressão tão tola, eu ainda desfilava com um frasco de base para maquiagem cor da pele, passando reboque no que agora se parecia com uma bola de pingue-pongue disforme, fazendo o passarinho parecer bem mais gordo do que de fato era. Com a ponta do dedo, sentindo o calor, apertei o inchaço sem prever o líquido amarelo que sairia dali, pelos poros. Pus verde, e azul, e vermelho, e cor de rosa.

O dedo puxado no susto impediu que a lembrança do pássaro se esvaísse toda junto ao arco-íris de nanquim. Uma pena. Dos vestígios do que foi pássaro, já não tão pássaro e descoberto naquela mesma noite, restaram apenas uns riscos desconexos formando um estranho jogo de varetas coloridas e inertes, traços indeléveis de uma criança aprendendo a manejar a canetinha.

Meu pássaro tosco? Nem sei dizer se ainda está lá.

Se foi, creio, voou no apagamento do tempo, nas desimportâncias que o mundo adulto nos impõe. Talvez ainda esteja lá. Talvez não. Há tempos não visito meu tornozelo e, exercício para este texto inspirado na obra Quer Ver? Escute, experimento sonoro-dramatúrgico do Grupo Galpão, decidi não espiar.

Ao menos por enquanto…

Quer Ver?

Recebi o link para ouvir a experiência sonora por indicação da querida amiga, atriz e escritora Ju Calafange. Andava louca para descobrir o novo formato investigativo do Galpão em seu espetáculo Como os Ciganos Fazem as Malas, uma peça de teatro exibida no Telegram. Após algumas tentativas frustradas — traições de minha cabeça oca quanto a dias e horários de exibição — o convite chegou-me como uma luva. Bastava clicar, colocar os fones de ouvido e pronto. Ali estava a dramaturgia bem ao meu alcance, sem as necessárias burocracias que têm dificultado meu acesso desmemoriado a alguns eventos virtuais, entre cadastramentos e senhas que teimam em fugir dessa não robô aqui. Eu.

Escute

Um convite a um mergulho no mundo dos sons e da memória, o experimento, dividido em cinco capítulos, proporciona ao ouvinte uma viagem a este que é, dos sentidos — ao menos assim é comigo — o mais íntimo. Ouvir nos leva para dentro. Dentro de nós mesmos. Dentro de nossas próprias percepções de mundo, nossas experiências ali naquele lugar que identificamos como só nosso. Nossa intimidade mais recôndita, aquela que dispara desencadeando em nós sensações palpáveis mesmo em nossos outros sentidos. Não é incomum que sintamos cheiros, sabores, arrepios, que nos transportemos para outros tempos e sentimentos ao ouvirmos, por exemplo, uma música que nos tatuou um tempo de vida. Assim, imersos no mundo sonoro, vamos aos poucos travando contato com um quebra-cabeças em cinco episódios que nos oferecem uma música aqui, sons desencadeados por ações humanas acolá, o poema que se apaga na boca do ator junto à sua memória, na linda participação afetiva do magnífico ator Paulo José. Ouvir a voz de Paulo é também um modo de nos apagarmos na tentativa de reconhecer, ali, a coragem, a vocação, a paixão que faz o ator subir ao palco da voz desafiando-se a si mesmo. Mais que isso, desafiando seu próprio o deteriorar a que todos estamos sujeitos, desafiando o apagamento no mundo.   

A cena segue…

A atriz, para não se desfazer junto às lembranças perdidas, pensa em tatuar a pele com poesia. Vivemos todos tentando agarrar aquilo que não podemos, afinal.  

E segue…

No lindo processo de construção e desconstrução de língua e identidade em uma aldeia Guarani. Outra fala em seu lugar correto. A dos povos indígenas.

O som de um trem.

A voz de quem se perde de sua pátria.

Reflexões.

Metáforas para a própria vida.

O mito das sereias. Seus homens apagados em ossos sem rosto sobre uma pedra, alertando da perigosa aventura de quem se aventura a este mergulho. O da audição. O de nos emaranharmos em nossos labirintos. É pelos ouvidos que entra a saudade. E é por eles, igualmente, que nos penetra o amor, o ódio, os risos, a música, as ideologias… Penso que deve ser por ali, também, que se esvaem as memórias do que um dia fomos.

O espetáculo-sonoro não para.

O autor que não sabe se o que narrou ocorreu de fato. Mais que isso, se ocorreu como narrado. Se sim. Se não. O que é a realidade, afinal?

Processos de construção e desconstrução de um outro processo ainda maior, os mistérios do recordar. E o do esquecimento. No fim das contas, relembrar é reafirmar no mundo o que somos, refazer nossas pegadas em um chão de areia. E se nos fogem entre os dedos as reminiscências, é que um pedaço de nós há de ficar irremediavelmente pelos trilhos.

Os do apito de um trem.

Os de nossas vidas. 


Quer Ver? Escuta

“Um colecionador de sons; uma atriz que está perdendo a memória; um homem que guarda uma voz; um cão que estuda línguas; uma sereia que lê poesia; uma mulher em movimento; um locutor em busca de silêncio. A primeira peça radiofônica do Grupo Galpão é um chamado à escuta”.

PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS: Alberto Pucheu, Clara Kutner, Felipe Andrade, José Artur Coelho de Aguiar, Masha Serebryakova, Mírian Cavour, Paulo José, Rossandra Cabreira, Simonete Torres, Walmor Corrêa e Zora Santos.

POEMAS DE: Alberto Pucheu (Apesar de Tudo, o Impossível), André Dahmer (I, II e III), Angélica Freitas (Quem Não Pode Ser Marinheiro), Julia Panadés (Um Poema Precisa Ser Salvo), Prisca Agustoni (Somos Uma Espécie que Migra) e Ricardo Aleixo (Antiboi).DIREÇÃO – Marcelo Castro e Vinícius de Souza.

CLASSIFICAÇÃO – Livre

Para ouvir na íntegra: https://anchor.fm/grupogalpao


Vamos ao teatro?

Ah! Espiei…

Ele ainda está lá. Meu pássaro com cores de chiclete pintado em minha história exatamente como dele eu me recordava. Ele tem outras histórias. Muitas. Quem sabe eu me recorde delas por aqui em outras ocasiões… Para meu alívio, ele está lá.

Porém, cá entre nós, creio que só está ali porque o escutei.

Voltou porque ouvi este belo e emocionante trabalho do Grupo Galpão e, assim, já não o quero mais apagado.

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