CONCEIÇÃO – Episódio 3: CAMINHOS CRUZADOS – Renata Rothstein

Pacheco chega ao Rio de Janeiro, ansioso e meio sem saber o porquê. Os pais ficaram contrariados, não deram um centavo para a viagem, Pacheco nada pode fazer, obedecia, apenas. Tropeçando nas pernas, desce do ônibus, percebe que já está tarde e resolve passar a noite por lá mesmo.

Dorme, e tem terríveis pesadelos com a cena do passado, quando Conceição vê a armação feita por Dênis, o forasteiro que certo dia surgira em Vila Maria, mudando sua vida para sempre. Acorda, já é de manhã. O homem vai pedir um café com os poucos reais que restam na carteira. No caixa, quando vai puxar o dinheiro do seu bolso para pagar o seu lanche, um choque: havia sido roubado enquanto dormia, e todo o dinheiro, que já não era muito, sumiu. Ele tenta pedir ajuda a alguém, tenta falar com os guardas, mas o ignoram, como a sociedade sempre faz, ignorando, minimizando, passando pano nos problemas – é, quando o desespero é alheio a situação é bem diferente.

Revoltado, percebe que não tem mais onde ficar e cogita voltar para sua casa, mas então se lembra dos pesadelos, e que não podia deixar mais um só minuto Conceição sentir que foi traída, então ele fica outra vez motivado a continuar em frente, e ir até à casa de sua amada. Aliás, precisava descobrir primeiro onde Conceição morava. Nunca soube.

Apenas a pequena pista: um endereço que um conhecido de Vila Maria lhe dera, no passado. No caminho, resolve parar pra descansar em frente a um bar, fica parado pensando em tudo o que se passou até ali e, um tempo depois, escuta a voz da desgraça da sua vida, implacável. Primeiramente, pensa que é sua mente ainda atormentada com os pesadelos. Daí, então, olha e é o Dênis Albuquerque, o desgraçado que armou toda aquela cena, tempos atrás.

Logo ele, naquele exato lugar, naquela cidade imensa. Ele, Dênis.

Praticamente não havia mudado nada durante aqueles anos, o canalha.

Pacheco vê o maldito indo até o fundo do estabelecimento, e então, movido pela fúria e sede de justiça, vai tirar satisfações com seu velho inimigo, e começam a discutir.

Quando Dênis vê o estado visivelmente alterado em que está o pobre homem, e que não havia ninguém por perto, começa a humilhá-lo, dizendo que sim, que foi ele que o dopou e contratou a prostituta, foi ele quem mandou Conceição olhar onde o noivo estava, tudo isso para acabar com o amor entre os dois. E que ele mesmo se casara com Conceição, e que anos depois, cansado dela, das doenças, do descaso com a aparência, dera-lhe um pontapé no traseiro, sem direito a nada.

“Inclusive ela já apresentava sinais da tuberculose, e deve estar morta a essa altura. Ela e os moleques, mas não tô nem aí!” — e ri, cinicamente.

O pobre homem, que agora comprova suas suspeitas, dá um soco na cara do miserável, e com Dênis caído no chão Pacheco grita, cheio de cólera: “Você não presta, imbecil desgraçado… Ela era o meu amor, minha vida ao lado de Conceição teria sido maravilhosa, você nem tem ideia do quanto tenho penado, durante todos esses anos!” — grita, descontrolado, enquanto soca e tira sangue da cara do antigo rival, que fica jogado num canto do bar, desacordado.

Percebe um grupo de homens apontando pra ele e comentando que ele estava fodido, que tinha arrumado problema com o chefe daquela área, que o “bagulho” ia ficar bem doido pra ele dali em diante.

De alguma forma estranha e sem sentido para ele mesmo, Pacheco agora se sente aliviado, embora confuso e até envergonhado.

Vergonha dele mesmo. Da vida que vivera até ali, dos sentimentos represados no peito, vergonha do que os pais pensariam, e de Conceição. E ao mesmo tempo, orgulho de si mesmo. Capaz de se defender, de bater em alguém.

Mistura de sentimentos. O corpo, dolorido. Vontade de sumir.

Pisava sem sentir o chão, respirava por respirar, só tinha um objetivo: rever sua amada.

Passa a tarde inteira caminhando, procurando pelo endereço da casa, quando, já bem tarde da noite, encontra um belo sobrado com flores vermelhas que se espalhavam pela varanda do andar superior, janelas envidraçadas, e um cachorrinho latindo.

Resolve bater. Toca a campainha. Uma mulher aparece, abre a porta.

“O que é?!” — grita, da varanda.

Pacheco, voz trêmula, pergunta se Conceição mora ali, e ela responde com grosseria que não mora ninguém ali com esse nome, e que era pra sair logo da frente da casa dela, senão ela chamaria a polícia.

Uma voz masculina grita de dentro da casa:

“Que é, Patrícia?” — a voz é austera, quase gutural.

“Nada, meu bem, só mais um negro pedinte. Já enxotei”.

Pacheco sente em cada fibra de seu já sofrido corpo e mente destruída cada palavra proferida pela mulher.

Era assim que era visto, então era assim que seria tratado? Negro, pedinte? Lembrou de Vila Maria, jamais fora ofendido devido à sua cor ou raça.

Cor, sim — porque raça, ele sempre soube que era humana, de honradas raízes africanas — embora nunca tivesse parado pra pensar muito nisso, até aquele momento.

Engolindo o choro, ele ainda tenta perguntar se a moça sabia onde Conceição se encontra atualmente, mas a mulher fecha a porta na cara dele.

Pacheco ouve as vozes, lá dentro, dizendo algo parecido com “liga pro Dênis, pros homens dele, diga que o cara que ele procura está por aqui. É ele, sim”.

Acha que está ouvindo coisas, que é a fome misturada com tristeza, não dá importância, segue.

Começa a chover. Chuva fria e fina. Fria como sua alma, fina como o resto de sanidade em sua cabeça. Sem dinheiro, sem comida e sem local pra dormir, Pacheco vai caminhando lentamente em direção a um beco. Chorando, e recitando as orações das quais sua pobre mente cansada ainda recorda, desmaia. Um tempo depois, ele é acordado por um barulho de ronco do motor de um carro e faróis brilhando em seu rosto. Pacheco se levanta e caminha até o carro. De lá sai o diabo em pessoa: Dênis Albuquerque. Então o homem, desesperado, vê no escuro a arma brilhar. Corre, e Dênis dá um tiro pelas costas em Pacheco — que por um milagre, coincidência ou destino, escapa.

A bala passa de raspão no ombro do homem. Pacheco ainda caminha, mancando, mas acaba caindo no chão.

Dênis caminha até o homem caído, se agacha e com a arma na cara de Pacheco, sussurra no seu ouvido: “Agora eu é que irei atrás de Conceição, vou acabar com a raça daquela cadela pessoalmente”. Imediatamente Pacheco consegue, num último gesto, puxar a arma da mão do rival, não por sua vida, e sim pela de Conceição.

Silêncio que parece durar uma eternidade. Em seguida, vários tiros são disparados enquanto lutam para pegar a arma, numa luta sob a chuva e lama. Pacheco dá um soco na cara do atirador, o que o atordoa por alguns minutos. A arma cai no chão, Pacheco consegue chegar até ela, mas quando se vira, Dênis já voltara a si e vinha pra cima dele, com uma garrafa de vidro. Pacheco, num instinto, dá um tiro na testa do homem uma bala reta e clara.

Após a morte do seu inimigo, Pacheco, extremamente ferido, caminha até o meio da rua, vê um carro da polícia chegando, o som das sirenes e as luzes. Desmaia.

Na comunidade do alto do morro, no mesmo instante, Conceição olha a chuva, sente falta de ar, de esperança, enquanto pede aos céus que sua casinha resista à tempestade.

Naquele dia não havia conseguido uma faxina. Andou, andou, e a única coisa que conseguiu foi gastar as solas dos sapatos.

Porém, uma coisa boa a fazia sorrir, tristemente: conseguira passar no médico do posto de saúde e pegar os remédios. Ia começar, enfim, o tratamento.

Naquele dia as crianças só não dormiram com fome porque era dia de doação de mantimentos na obra social que funcionava no asfalto, no início da subida do morro.

Uma lágrima — uma lágrima apenas — escorre pelo sofrido rosto de Conceição, enquanto olha para a mesa, enfeitada com uma florzinha do mato que as crianças deram a ela, num copo.

Uma florzinha. Azul.

Sem forças, mas com convicção, dizia para si mesma que ficaria curada. Por ela, pelos filhos, pelo que ainda viria.

Seria feliz. Ainda. Seria, mesmo?

Episódio 1: Sol do Meio-Dia

Episódio 2: Vila Maria

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