CONCEIÇÃO – Episódio 1: SOL DO MEIO-DIA – Renata Rothstein

Conceição caminha. Sacola de feira roçando o braço suado, os três filhos agarrados na barra da saia, as rugas da testa saltando de agonia debaixo daquele sol inclemente de verão, caminha.

A mulher de estatura pequena e ombros arqueados pelo cansaço, pele queimada de sol subia, arquejando, a ruela íngreme que levava à casa, feita de pau a pique, recém-pintada de amarelo. Cal com corante amarelo, pensa.

E era no ponto mais alto da comunidade, o mais perigoso e exposto à eterna luta entre os bandidos e a polícia (afora o tal poder paralelo), que Conceição sobrevivia: suor, lágrimas, muito trabalho pesado e alguma esperança, que nascia todos os dias, junto com aquele sol que trazia um calor que anunciava o fogo do inferno, e da mesma forma se desvanecia, quando, ao final de mais um dia, a mulher contava o dinheiro que conseguira juntar, parcas economias que mal dariam para comprar o pão e o leite para os filhos.

Conceição perdia tempo, perdia a razão, e o brilho nos olhos era só lembrança, que de tão distante já era como se não lhe tivesse pertencido, e sim à uma outra pessoa, um ente morto, um fantasma que ainda habitava as profundezas daquele corpo, hoje cansado, franzino e adoecido – um corpo sem alma.

Ela e os filhos somente, desde que fora abandonada pelo companheiro, não muitos anos atrás. Ou uma eternidade, talvez.

Conceição Porto de Albuquerque vira-se na rua da amargura assim, do dia para a noite, sem aviso prévio.

Sem parentes próximos e com amigos que lhe viraram as costas, o jeito foi seguir como deu.

Roubada e injuriada pelo ex-companheiro, que conseguira juntar todos os bens conquistados pelos dois e sumir no mundo, Conceição aceitara sua sina e de cabeça erguida jurara que daria conta da vida, dos filhos, de si mesma – até o dia em que pudesse ter de volta tudo o que um dia fora seu.

“Essa ladeira não acaba nunca”, pensou, o sol do meio-dia castigando com vontade seu corpo e alma, extenuados.

Olhou rapidamente para a beira da escadaria que levava à outra parte da comunidade. Devia ter mais de quatro metros e era sempre um convite, como uma voz sedutora sussurrando para que ela se atirasse dali, e acabasse logo com seus problemas.

Olhava para os filhos, sempre desistia.

Numa curva mais acentuada da ladeira a mulher para subitamente, olhos opacos e boca seca. Outra vez as dores no peito, o suor gelado, a sensação de desmaio, aquele mal-estar que vinha se repetindo já há um tempo.

Olha para os filhos, o suor turvando a visão. Entre lágrimas e tontura, constata: estão claramente desnutridos, destruídos pouco a pouco pela alimentação insuficiente, destituídos dos direitos de criança, tão óbvios que nem precisariam ser pedidos encarecidamente na Justiça, como ela fazia, sem êxito, aliás.

Ali a mulher sentia-se e reconhecia-se esquecida pela Justiça, pelos homens, pela humanidade. Pelo marido, aquele a quem amara e hoje era apenas um desgraçado, um ladrão miserável.

Conceição sofre. Sofre por ser doente, consome-se por antecipação pela futura ausência na vida dos pequenos – o que será deles? –, lamenta-se e pensa que estarão entregues à própria (falta) de sorte.

O amor pelos filhos é que ainda fazia seu mundo girar, que a fazia clamar todos os dias e noites por uma cura, ainda que milagrosa.

“Crianças, esperem pela mãe”, pede, a voz sumida, em meio à falta de ar persistente.

Senta-se no meio-fio, enquanto as crianças brincam com um gatinho de rua.

Após o breve descanso, a mulher sente-se um pouco recuperada e voltam a caminhar: “Meu Deus, essa ladeira não acaba nunca?”, pensa.

As crianças conversam, falam sobre um Natal passado e os presentes que ganharam, naquele dia já tão distante.

Enfim uma última curva e a casinha humilde, pintada de cal com corante amarelo, doação de um cliente de faxina.

Na verdade, era mais cal que tinta, mas a mulher gostou do efeito, a cor trazia um quê de alegria àquele que era, agora, o lar onde abrigava seus filhos, seus medos e ainda alguns poucos sonhos, diluídos em desesperança.

Colocou a compra feita na xepa sobre a mesa e olhou, espantando-se novamente com o preço das coisas: como tudo estava tão caro!

“Essa semana, se conseguir mais uma faxina, compro a mistura e já estamos garantidos, teremos ao menos o que comer”, resignava-se.

No lado de fora do casebre as crianças brincam, riem, transformam pregadores de roupa quebrados em boneca, carrinho, constroem cidades. E, alheios à realidade, os brinquedos antigos completam o cenário.

A mãe sorri, tristemente. Não gosta que as crianças percebam. Disfarça.

Então entra, segue a intuição de sua fé – que ao contrário do companheiro, da vida antes tranquila e da saúde, não lhe abandonara.

Estende uma toalha sobre a mesa, acende uma vela, reza uma oração antiga que aprendera com a falecida madrinha há muitos anos.

Ernestina, a madrinha, era uma boa católica que gostava de frequentar a casa de uma cigana misteriosa que simpatizara com ela, e confiava-lhe muitos segredos.

Ia à casa da amiga cigana para “aprender as mandingas do povo antigo”, era o que dizia a madrinha.

Conceição lembra e chora, crê, clama por tempo. Tempo para ver crescidos os filhos, para ver a saúde recuperada, tempo para – quem sabe? – voltar a ter tempo para apenas viver.

Outra vez a sensação de desmaio. Sente um torpor e perde a noção de espaço. À sua frente não estão mais as paredes descascadas, tampouco sente a dor, sempre inclemente, no peito.

Levanta-se com esforço, chama os filhos para dentro, já é tarde.

Por hoje, todos alimentados e em segurança, dormem.

Amanhã a luta continua.

E Conceição continua, também.

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