MILITÂNCIA POLÍTICO-ESPIRITUAL — Episódio 3 de 4: FANTASMAS NO ARMÁRIO — Eduardo Selga

— Esquece não, Dona moça: vergonha na rua. Então, comida de todos os santos uma lua antes. Carne vermelha Exu encruza perto casa grande.

— Entendi, mas como…

— Sonho. A lua vai virar nova, aí pouso no sonho seu pra mostrar dia certo dos despachos.

— Graças a Deus! Estamos bem perto de expulsar aquela maldição que comanda o país. 

Sete Aldeias sai da posição agachada, levanta-se com alguma dificuldade. Cavalheirescamente, oferece a mão à ialorixá, que se apoia na gentileza e também fica de pé. Ele emite um som longo e alto, fazendo surgir do meio da mata uma enorme cascavel, que se aproxima, escala seu corpo, repousa em volta do pescoço e, por fim, olha fixamente para Suindara.

— Dona Moça, olha bem negrume olhos dela, noite sem estrelas — o tom é firme, porém suave, enquanto faz alguns sinais com o polegar direito nalgumas partes do corpo da ialorixá (cabeça, garganta, tórax, umbigo, palmas das mãos), ao mesmo tempo em que expulsa fumaça da boca, como se estivesse fumando um charuto ou cachimbo.

— O que vê na cobra?

O desapontamento é indisfarçável. Em um dos olhos do réptil, a cena mostra o ridículo que atingirá o presidente em breve. Porém, refletido no outro, não vê seu amor, a deputada Onana Cantarela, ocupando a cadeira mais importante do país, e sim outra pessoa cujo rosto não se define. O cenário mostra o gabinete presidencial, mas há muito sangue manchando as paredes e, sobretudo, um corpo quase todo sob a mesa. Visíveis, apenas as pernas e um dos braços, cuja mão segura uma aquarela de tamanho diminuto. Impossível ter certeza, mas o quadro se assemelha ao mesmo que ela, Suindara de Logunedé, comprou recentemente para presentear sua paixão e que a esta hora já deve estar em suas mãos.

Arregala-se diante do inconteste presságio da morte de quem preenche tanto seu coração. Vai morrer mesmo, meu Deus?! Vai morrer?!

Dá para sentir o cheiro do sangue que avermelha as paredes. Do quadrinho, escorrem as tintas, que ao caminharem se encostam sem mistura, como correntezas oceânicas tão distintas entre si. Parecem procurar uma saída, e encontram: transbordam pelos olhos da cobra, pingam no corpo de Sete Aldeias, lágrimas vazando da alma.

Lá no mais fundo que consegue enxergar, no fundo do olho que mostra o vexame do presidente em praça pública, há uma mulher caída na multidão frenética. Levanta-se, meio atordoada. Bate as mãos no corpo para varrer os restos de poeira na pele. Como que caída de alguma altura. Vira-se em direção à ialorixá. Sorri. Aproxima-se. Gesticula um chamamento. Ao fundo da imagem, tanto à esquerda quanto à direita, enormes balanços de madeira surgem vazios, movimentos em diagonal sem sincronia.

Em 26 de agosto.   

Ele não sabe o que acontece consigo, desejos súbitos que deixam a carne trêmula nalgumas noites. Na verdade, nem tão de repente assim: as noites em que está desse jeito começam a partir das primeiras horas do dia, nos primeiros olhares em direção a alguns rostos a percorrer os corredores da Casa Presidencial, nos primeiros desejos por corpos, causados pela internet (usar a rede para tudo, eis um delicioso vício adquirido).

Nesses dias de voracidade, manda às favas os documentos oficiais e as conversas com membros do Fórum: quer mesmo é o exercício de, ao aproximar-se de seus secretários e ministros, ao conectar-se às páginas de pornografia, adivinhar os odores íntimos das virilhas, dos homens, o acre da pele semeada de testosterona. Mais: à medida que o sol avança e se encaminha para o outro lado do mundo, a volúpia cresce, de modo a explodir durante a noite. E se masturba à exaustão, rememorando as figuras masculinas vistas durante o expediente, voltando às páginas salvas da web, ao mesmo tempo em que balbucia os nomes dos namorados e dos quase amantes que teve desde os tempos de vereador. Por várias vezes sentiu-se compelido a encomendar a morte de alguns para evitar a concretização das chantagens, ameaças, escândalos públicos, o desmonte da imagem de político varonil.

Nas noites em que mergulha no onanismo, a primeira-dama, deitada sozinha no leito do casal, nua como quase sempre ao dormir, finge não escutar os gemidos dele, vindos da sala ou do escritório, os nomes masculinos assoprados entredentes. É até bem-vinda a distância, um sossego: ele não insiste nas tentativas inúteis de relação sexual, no intumescimento pela metade — quando muito —, nos retóricos “eu te amo”, na forçada tentativa de ser agradável (como conseguir isso se o ódio velado entremeia a relação dos dois?), tentando retornar aos tempos em que havia alguma nesga de carinho. Naquela época, aspirante a vereador, ele até mostrava algumas qualidades como homem, não era um ser de caráter volátil.

Bem sabe: acaso adentre subitamente o cômodo em que o marido agora se manipula, defronte do computador, ele fingirá a inexistência dela, e continuará com seus nomes masculinos escapando pela boca ávida, às vezes salivando; se levantar e abrir a porta do guarda-roupa embutido verá os Evandros, Brunos, Cristianos, Felipes e outros tantos esqueletos da alma de seu marido-presidente. Estão ali, guardadas na forma de objetos, as lembranças de todos os machos de seu marido (cuecas, gravatas, abotoaduras…), e também os bilhetes ameaçadores ou carinhosos, dos quais ele não consegue se livrar e, pobre coitado, supõe estarem tão bem escondidos que ela jamais descobrirá.  

Em duas ou três vezes, muito habilmente, sugeriu admitisse de uma vez sua condição, de modo a não ensandecer. Várias autoridades mundiais e nacionais já o fizeram e, em muitos casos, suas popularidades ganharam volume. Em todas as três ocasiões, porém, foi violento e quase lhe rendeu dentes quebrados. Então, hoje, que enlouqueça! Que perca o mandato, conforme está buscando a oposição no plenário e algumas forças políticas da sociedade! A própria primeira-dama integra o movimento de derrubada, embora ele, inteligência rala, nem imagine.

Sente a vibração do aparelho na meia-luz do quarto.

Leva a mão a necessaire sobre o criado-mudo, pega o celular. O visor denuncia a origem da mensagem: “Presidenta”. Sorri. Ah, Onana… Só você tem essa capacidade de entrar em contato nos momentos certos.

“Primeira-dama, meu segundo amor: Suindara de Logunedé entrou em contato. Preste atenção. Se ele estiver se masturbando no momento em que você receber a presente mensagem — e apenas nesse caso — abra o guarda-roupa e acompanhe os fantasmas até o cômodo onde seu marido se encontra. Não se espante com a reação dele, qualquer que seja, e, sobretudo, deixe acontecer. Por mais tresloucado que possa lhe afigurar. Não só isso: acompanhe seus instintos. Faça o que lhe vier à cabeça. Daqui a uns dias a gente se beija, se ama, querida”.

Existe alguma chance de ela subir o degrau, ser o primeiro amor de Onana, ultrapassar aquela feiticeira do Cão? Esperanças sólidas são escassas, apenas uma levíssima brisa, mas ao menos é alguma coisa. De todo o modo, nem é por isso que se movimenta, obedecendo às instruções da presidenta — tenta enganar-se, convencer a si mesma que a causa política é o mais relevante.

Nem se veste: levanta-se, abre a porta central do móvel embutido, conforme instrução. Não enxerga nada além dos objetos corriqueiros, no entanto, sabe que as sombras dos apetites reprimidos existem ali dentro e a acompanharão pela casa.

Na fronteira entre o quarto do casal e a sala, o retângulo onde existia uma porta por ele arrebentada a murros em momento de fúria. Jamais a consertou ou deu ordem que alguém o fizesse. Sobraram os marcos, em cuja lateral ela encosta um dos ombros, esforçando-se para extinguir o tédio fincado em seu rosto.

Apesar de o presidente estar mais ou menos frontal à primeira-dama, e notar pela periferia dos olhos a figura nua da mulher, não abandona as imagens masculinas que desfilam no vídeo. Ah, tantos bíceps…

— Não vem dormir, querido? — sua nudez sem ao menos uma camisola interroga.

A expressão de desejo é mentirosa, mas interpreta muito mal. Lábios e língua clichês. Na verdade, quer mesmo é ver a reação dele diante dos fantasmas que, embora não consiga ver nem sentir, certamente a acompanham, encostados em seu corpo ou ocupando algum espaço no vão. Abandonará o monitor, vai pular no colo de cada um dos machos metafísicos? Nesse caso, aqueles cujos corpos conheceram a sepultura por causa do presidente reagirão como?

Seu corpo exala aroma de amêndoas, mas sabe: o costumeiro é a indiferença, o presidente manter a atenção na tela. Ocupar-se da carne disponível ao toque da mão em detrimento da imagem repetível? Nem pensar!

— Vamos brincar debaixo do lençol, querido?

Tem consciência do quanto a considera uma criatura insuportável. Entretanto, o fogaréu interno, a respiração ansiosa, fazem com que o presidente ouça na frase da esposa outra pessoa: é um timbre marcadamente masculino, velho conhecido da carnificina dele contra ele mesmo: é a voz de seu ex-amor. Será possível?! — pensa um grito e imediatamente ergue a cabeça, estanca os movimentos histéricos da mão sobre a genitália.

O espanto é grande, nunca acreditou em sobrevivências após a morte. A voz é de seu último namorado, morto há poucos meses num acidente automobilístico induzido, mas o corpo é dela, a mulher mais horrorosa que já conheceu nessa porcaria de vida e com quem as regras não escritas da política o obrigam a dividir o cotidiano. Mais que isso: estão ali, em pé, todos os outros, sem faltar nenhum, desde quando começou a ter ânimo para caçar as presas das quais sempre gostou e, ao mesmo tempo, estabelecer itinerários de modo a regalar-se em segredo com seus banquetes.

— Parece ter visto algum fantasma, meu amor… — a voz grave pergunta —. Não quer vir para a cama comigo, tudo bem, estou acostumada, mas ao menos venha passear na pracinha com nossos amigos aqui, saborear uns churros bem melados.

Rebolando, ela se encaminha em direção à porta de entrada. Abre-a, como quem convida. Os antigos casos amorosos do presidente saem em fila indiana e cabeça baixa. A partir de onde está, ele deveria ver apenas a garagem e a piscina iluminadas, mas não é o que acontece: o cenário lá fora é todo ocupado por muitos lábios, e pares de olhos. Com ou sem cílios aparentemente postiços, flutuam no ar, cada um mais lindo que o outro. Piscadelas em direção dele, sonoras beijocas.

— E então? Vamos? — a primeira-dama indaga com a voz que embargou seu corpo.

O cômodo é invadido por muitas cascavéis, todas saídas do quarto de casal. Circundam o presidente, escalam a mesa sobre a qual está o monitor. O som hipnotizante dos guizos. A presença dos ofídios, aliada ao que acaba ver além da porta aberta, lhe produz uma necessidade inarredável de ir à praça, acompanhar seus ex-amores. Beijar um por um, dizer da saudade, a quanto tempo não lhes vejo — quem sabe? Ainda que a primeira-dama vá junto.


Episódio 1

Episódio 2

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