QUERIDO ALFREDO – Renata Rothstein

São Paulo, 23 de novembro de 2020

Querido Alfredo,

Como tem passado?

Peço desculpas pela letra tremida. Acho estranho, logo eu, tão conhecida pela minha caligrafia, mas enfim, é o que temos para o momento.

Paro, olho ao redor e me lembro que, conforme combinei, se tudo correr bem você não receberá essa carta.

Eu mesma direi tudo o que está escrito nela.

Alfredo, é impressionante como toda essa turbulência me fez pensar (ainda mais!) em você, nas suas teorias que eu não entendo, mas concordo: o tempo é mesmo relativo.

Sei, sou a pior pessoa para explicar essa fórmula. Desisto.

Penso em você, em nosso casamento, quarenta e cinco anos, Alfredo. É uma vida.

Nunca soube o que é ser, sem você, meu querido.

Aqui, estou livre. É tão estranho.

Pés e mãos cansados, olhar embaçado de quem já não conta os dias e as noites, mas vive e age —  urge, no ritmo de açoite.

Dormir, raramente o faço. E, antes de dormir, elevo minha prece para que, se tiver algum sonho ruim, alguém me acorde.

Paredes de um verde pálido, homens e mulheres vestidos de branco, máscaras, tensões tão profissionalmente controladas, mas que eu percebo, você sabe como eu sou sensível — e tudo geralmente ficando distante, e o sono, um sono que não passa nunca.

São os remédios, disseram.

E durmo, quando as dores e o cansaço e a tosse deixam.

Quando não, simplesmente desmaio. Até acho bom, não vejo o tempo, o tal tempo, relativo, passar.

Alfredo, diga às crianças para ficarem tranquilas que a mamãe está indo bem.

Aos netos, um beijo imenso…

Penso muito em você, no nosso primeiro encontro, eu normalista, você já trabalhando como contínuo na loja de “seu” Arthur… Nosso casamento, simples, mas muito bonito.

Penso nas minhas aulas, nos alunos de outrora, nas poesias que tanto amo ler, e que humildemente me atrevo a escrever, vez ou outra.

Aqui, vivo um voo solo na minha cabine de corpo e alma, forma e pensamento, esse amontoado de matéria em funcionamento, lembrando a todo instante que há esperança, que essa minha andança, toda essa dança solitária, há de ter um dia valido a pena.

Rostos cobertos. Dores descobertas. Amores (re)descobertos.

Tudo que tenho visto é um contraste gritante com tudo que tenho vivido nos últimos tempos.

Últimos tempos, querido.

Perdão, às vezes enfraqueço, esqueço de que preciso ser forte, por nós.

Guerra contra o invisível, revelando o impossível, mostrando que nem sempre tudo o que planejamos viver é possível.

De vez em quando, sinto você ao meu lado, me assusto, penso que estou feia, pálida, cabelos desajeitados. Mesmo assim me animo e olho: mais uma vez, ninguém.

É, Alfredo, meu amor, não é nada fácil.

Depois de tantos dias e tantos “vai passar”, já não estou tão solitária assim, temos outros leitos e estão todos sempre ocupados, enfermaria coletiva, você sabe como é.

Não me queixo. Ponto.

Vou descobrindo a cada dia uma nova parte de mim mesma.

Encontrando o outro, em sua parte mais frágil, mergulho naquela parte da minha própria busca que, na correria do dia a dia ficava ali, esperando, humilde, para ter sua necessidade, sempre urgente, atendida.

E então eu estendo minhas mãos, como personagem desnecessária, supro e alinho a querência de tudo o que tem ficado sufocado, nessa contradição que prende para libertar. Um dia.

Mais um dia.

Ainda bem que consigo pensar. Que bênção poder escrever, aqui nessa enfermaria.

Espero com fé ir logo para o quarto. Então você poderá me visitar, meu amor.

Vejo luzes e sombras, medos, heroísmos. Demônios e anjos, choros e alívios que se chocam, dias afora, numa acrobática luta pela sobrevivência.

Êxitos. Leitos. Dúvidas.

Sorrisos de superação, leitos vazios. Choros e suspiros. Penso, um pouco confusa, nos túmulos que não viram, que não verão despedidas.

Deus nos livre!

Eu vejo o tormento. Chuvas e sóis, e eu a sós, pouco a pouco ergo minhas mãos seguras, duras, mal-acostumadas ao descansar, e deixo de insistir, pois é até injusto reclamar agora.

Alfredo, meu amor, a partir de agora uma enfermeira muito gentil vai continuar escrevendo essa carta, está bem? É que estou só um pouco mais cansada, só isso.

Continuando, penso em quanto de um desconhecido eu morre, escondido no meio de uma praça pública, debaixo de um tapete de ouro imaginário, protetor, tão esgarçado, dia após dia?

Não choro, não rogo, não imploro.

Por ora, percebo, sou eu o meu melhor lugar.

Queria ter percebido, enquanto era cedo. Um dia foi cedo, e eu podia tanto…

Sinto dizer que esmoreço. Sinto saber que, provavelmente, não haverá recomeço.

O mundo, lá fora, outrora seria voado, e eu, sensação de algemas invisíveis e medonhas, sou avisada de que preciso receber auxílio para respirar.

Alfredo, sim, preciso ser entubada. Paciência.

E é só. O fio no meu braço, o sangue que insiste em voltar pelo fio escapando das minhas frágeis veias azuis, tudo agora parece, por incrível que pareça, fazer sentido.

Falam em vitória. Bom, você me conhece, sabe que eu não sou de entregar os pontos, mas, tenha a minha história o desfecho que tiver, saiba que em todo esse tempo em que passamos juntos eu pisei um céu de estrelas cadentes, e esse chão será transformado em canteiro de eternas sementes.

Quando tudo terminar — sabemos que termina, sempre — eu estarei, de um jeito ou de outro, aqui, e essa lição que meus olhos por tantas vezes aterrados viram também será guardada.

Talvez um misto de tristeza, carinho, desolação, alegria, que constitui o que agora considero o maior ensinamento da vida: o amor.

Meu amor por você, meu amor pela vida.

Te amo. Sempre tua,

Helena.

Senhor Alfredo, aqui é a enfermeira Bruna. A carta de dona Helena estará entre os pertences dela. Agora ela seguirá para a UTI. Abraços.

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São Paulo, 4 de fevereiro de 2021.

Alfredo, meu amor,

Venho deixar sobre o seu túmulo a carta que você não leu, querido.

E esta também, a última.

A vida é esse mistério, portas que se abrem e então nos deparamos com salas de diversas decorações e sentidos, e nós que nos (re)inventemos para continuarmos a caminhada.

Eu sobrevivi, meu querido. E espero que de alguma forma você saiba, eu tenho fé que sim, você sabe.

Apenas saiba que você estará, eternamente, em mim.

Até breve.

Te amo,

Helena.

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