A MALDIÇÃO DE CLARICE – Sandra Godinho

− “Todas as manhãs ela deixa os sonhos na cama, acorda e põe sua roupa de viver”.

− E não pomos todas? – disse à minha amiga com alguma rispidez obtusa, enquanto aguardava, encostada ao balcão, a nova fornada de pães franceses. A intolerância brotou mais por pirraça que por condescendência.

− É uma citação de Clarice Lispector –  minha amiga esclareceu, como se eu me importasse, como se a mim fizesse alguma diferença. Não fazia, mesmo ela murmurejando a frase como mantra, que todos os dias vinha morrer nos meus ouvidos. De desistência, de desolação, de quem tinha muito a lidar com o tempo pouco, desses dias que se apressavam ao nascer.

Carla insistia em Clarice, declamando frases da escritora que supostamente deveriam causar algum efeito. Não causava. Caso causasse, seria o asco. Onde já se viu comer baratas como se se tratasse de uma iguaria? E suas personagens torturadas por uma vida de fracassos? Mania besta de olhar o mundo através do desencanto. Macabéa nunca teria o charme de uma Gabriela. Nem a ironia de um Brás Cubas, nem a humanidade de uma Baleia. Quando muito, Clarice era a Galinha. E sua consciência da humanidade, melhor dizendo, da desumanidade. Clarice e suas epifanias retiradas dos cotidianos comezinhos. Não, definitivamente, eu e Clarice nunca haveríamos de nos entender. Carla que me perdoasse. E ela, em suficiente solidez, traçava o mapa de desafetos em meu rosto, trançava o saco de pães numa mão e a decepção na outra, deixando-me a sós com meus desapreços.

Apressada e aperreada, eu rumava para casa, já antecipando o ritual das tarefas, o torvelinho de coisas a se arranjar, sem sensibilidade ou surpresa. Eu, dona de uma casa de cheiros e de choros, dona de um colo que acolhia incômodos. Lavar a louça, varrer a vida desvirtuada para baixo do tapete, arear as panelas para refletir um novo semblante, passar a roupa e o passado de sonhos que não se concretizaram, ranger o amor todas as noites no dossel da cama, onde o marido se entrelaçava em pernas e braços, formando uma teia retesada de uma promessa mal cumprida.

Não, definitivamente Clarice não sabia nada dessa brutalização embriagada de todos os dias, dessa inaptidão para a perplexidade, desse definhar em delírio. Carla se esforçava, declamando a ladainha em meus ouvidos, com a esperança recrudescida. Eu, também recrudescida, com o assombro sem presteza. E me voltava ao pão com manteiga de todos os dias. De todas as horas, sem sequer encarar a tirania que havia numa submissão. Coisa de que só me dei conta dias depois, ao domar a pilha de roupas para serem passadas depois do café. Bastou um átimo para o pensamento, já pleno de Clarice. Eu, naquela paralisia desolada diante da tábua de passar, o ferro quente abrindo caminho na aba de madeira, traçando a trilha lisa no tecido engelhado, a trama revoltosa alisada a ferro quente, acabando com a beleza de um fio alvoroçado. Bastou um pensamento para o desacerto, para então ressuscitar o vigor escondido nos meus subterrâneos.

Foi o impulso diante da possibilidade que me mobilizou, que me aturdiu com a consciência de renascer sem me atrelar a comportamento implícitos ou a convenções sociais. Foi o impulso, mais que o pensamento. O impulso foi a danação. De imediato, livrei-me das roupas, tomei da pilha de tecidos revoltosos um vestido amarrotado e o vesti, buliçosa, com pressa de escapulir pelas ruas para beber do vento, embriagar-me de flores, buscar uma brecha em cálculo arrazoado, com o incontestável instinto de sobreviver aflorando na tarde que me dourava de sol, com uma luminosidade que antes nunca vi.

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