A FILHA DO IMPERADOR – Episódio 2: DOM SEVERIANO III – Eduardo Selga

Era demasiado tedioso, e muitas vezes sem sentido, ficar sentado atrás daquela mesa, assinando ordens de serviço, leis, decretos e todo tipo de papel, manter acordos cada vez mais espúrios com os edis (não que a honestidade lhe fosse cara), cada um mais vaidoso que outro e sempre ambicionando outro título de nobreza. Barganhando alguns votos na câmara municipal, o barão almeja ser visconde, a condessa quer ser marquesa… E segue a toada. Ainda bem que poucas matérias eram votadas, a maioria das decisões e leis partiam dele, Dom Severiano III. Caso contrário, nem haveria mais títulos de nobreza no estoque.

Além disso, não tinha nenhum pendor para o cargo hereditário que ocupava. Queria mesmo era ser bailarina, mas seu corpo dizia não. Se o mal-estar com o cargo aumentasse muito, chegasse ao nível do insuportável, já tinha seu futuro traçado: arrumaria suas malas; passaria a coroa para a filha, que insistia em não o reconhecer como pai e por birra vivia na insalubridade de Escrava Anastácia, na periferia da região metropolitana; iria para Pasárgada, pois lá, sendo amigo do rei, conseguiria viver anônimo e, anonimamente, transformar aos poucos seu corpo masculino em algo leve o bastante que o permitisse bailar. 

O calor descomedido da cidade naquela época do ano, além de exigir abertas todas as janelas do Paço Municipal, fazia com que sua vontade de expressão artística por meio do corpo aumentasse muito. Assemelhava-se à reação da libido em contato com um afrodisíaco. E era no parapeito de uma das janelas do gabinete de Dom Severiano III que Amora estava pousada, em silêncio, pouco visível e atenta. Estava em busca de certas informações que poderiam ser preciosas para sua amiga Melisma Bomani, àquela hora assistindo às aulas na escola do bairro.  

Até havia mais o que fazer no expediente, mas estava exausto. Não por causa de excesso de trabalho, e sim pelo tanto que lhe era desagradável pensar burocracias em tempos de sol tão vivo. Mandou cancelar reuniões e tudo o mais que estivesse agendado.

Despiu-se da murça feita de penas de tucano, que lhe causavam urticárias no pescoço em dias demasiado quentes.

Tirou o manto pesado e de mal gosto, uma exigência da tradição.

Na verdade, tirou quase toda a roupa, ficando apenas com as de baixo, algodão reles. No amplo espaço de seu gabinete, imaginou-se no balé Coppélia, cuja estética inspirada no fantástico sempre lhe encantou desde quando, do camarim do teatro Real Theatro Metropolitano, nos idos de 1890, teve contato pela primeira vez com o espetáculo.  

Enquanto girava e voluteava, duas certezas: felicidade é uma questão de movimento; aquele cientista alemão estava certo ao afirmar a aparente loucura de que o tempo é relativo.

Severiano III estava muito longe de ser Dom Quixote, sobretudo pelo nível de altruísmo, mas o escudeiro entrou às pressas. Invadiu o gabinete com uma papelada nas mãos. Reteve-se diante da cena, um tanto constrangido ao ver o imperador dançando naqueles trajes, mas o rapaz já dera motivos bastantes para o mandatário confiar muito em sua discrição. Por isso qual continuou seu movimento de adágio, usando a mesa como apoio improvisado.

— Não precisa sair, você sabe disso. Apenas tranque a porta e diga logo qual é a urgência. Espero mesmo que seja tão imperativo assim para atrapalhar meu balé — resmungou, continuando a exercitar-se.

— Sou portador de más notícias. O serviço de inteligência do município descobriu uma articulação do movimento político de Escrava Anastácia no intuito de assassinar Vossa Majestade se houver de fato a remoção dos moradores do Tugúrio. Se porventura me permitir um conselho, seria interessante adiar a ação marcada para amanhã nas primeiras horas da tarde, até que os líderes sejam presos ou a poeira baixe. Outra possibilidade é manter a data, contudo sem Vossa augusta presença.

Interrompeu o giro dado ao corpo justo quando, em sua mente, dançava a cena mais incisiva de Coppélia. Ali estava, de fato, uma notícia grave, ao invés dos rotineiros de sempre, em atenção dos quais não valeria a pena interromper seu balé. Uma coisa era não gostar de ser imperador, administrar aquela cidade que parecia não ter centro, antes um sem-número de periferias; outra, muito diferente, era aceitar o vilipêndio de sua autoridade. Suas ações imperiais não seriam obstaculizadas por terroristas de subúrbio. Era o que faltava!

— E quem eles pensam que são?

— Um movimento bem organizado, Majestade. A penetração junto às massas se dá por intermédio da rádio Corsário Preso, que já tentamos tirar do ar, mas a maioria dos edis só aceita votar a cassação se sua Majestade elevar seus títulos de nobreza. Os mais radicais, dois ou três, nem assim: Escrava Anastácia, sobretudo o Tugúrio, faz parte de suas bases eleitorais. A hipótese de colapsar a antena também não tem funcionado: os moradores têm uma patrulha noturna bem armada que impede a aproximação e a sabotagem.

Nem se veste: Dom Severiano III dá um tapa na mesa de trabalho, grita sua irritação. Amora não se assusta, camuflada num canto entre a janela e a grossa cortina de veludo retraída de modo a permitir luminosidade e frescor.

— Desgraça! Como é difícil governar essa gente! Por isso meu avô, Dom Severiano I — o Erudito — já dizia: “império democrático é como uma frase sem concordância verbo-nominal: não funciona”. É preciso dar fim a semelhante indecisão. Ou bem ao mar ou bem à terra. E não é apenas entre os dirigentes políticos que esse anacronismo tem adeptos: também as boas famílias e o populacho gostam de cultuar essa Anfisbena peçonhenta.

— E então, Majestade? Devemos adiar ou as remoções acontecerão sem Vosso comparecimento?

— Nem uma coisa nem outra! Faço absoluta questão de dirigir o trator imperial que comandará a remoção dos tantos casebres que se amontoam em terreno da municipalidade. Construir a Transmetropolitana é uma urgência, precisamos de uma avenida longa e larga para acabar com o engarrafamento de carruagens, charretes, “grand-bis” e Fords Bigodes no centro da cidade. Ou isso ou o colapso viário!

— Majestade, expor-se vai vos custar a vida.

— Nem em sonho! Não se esqueça de que a dinastia à qual pertenço foi posta na Terra e nesta cidade diretamente por Deus. Não vai ser meia dúzia de esfarrapados que irá contra a vontade divina.

— Eles estão bem armados…

— Nossas armas não são zarabatana e estilingue, meu caro. De toda a maneira, diga ao entomologista da Corte que providencie para amanhã, na hora da remoção, as borboletas-monarcas em quantidade tal que ao voejarem em torno de minha cabeça, ocultem meu rosto por completo. Desse modo ninguém me reconhecerá. Assim, impossível atentarem contra minha pessoa. Diga-lhe também que são necessárias as mariposas-imperador alteradas geneticamente. As maiores e mais fortes. 

— Majestade… Com toda a reverência… Essa ideia não tem pé nem cabeça, e…

— Nem precisa ter! Basta ser uma ideia minha para funcionar!

— Há de convir que não vemos pessoas por aí a caminhar com um bando de borboletas cingindo-lhes a cabeça. Logo, Vossa identidade estará revelada pela extravagância. Mesmo porque, as vestes imperiais…

— Estarei em mangas de camisa, meu inconsistente Francisco Gomes… Não há como me perceberem. Retire-se. Você já me viu sem roupas o bastante por hoje. Mais tarde talvez eu lhe chame para ouvir comigo Coppélia ao gramofone.

Ainda havia mais informações a serem dadas ao imperador, no entanto não valia a pena insistir. Por isso, ao invés de dizê-las, o escudeiro pôs os documentos em cima da mesa. Deu meia volta e saiu em busca do entomologista, a contragosto. Como era difícil convencer o imperador municipal de qualquer coisa que fosse… Para ele, um subalterno facilmente substituível na folha de salário do Paço, esse comportamento não era menos que total parvoíce, mas, é lógico, nunca teria a petulância bastante para dizer-lhe isso. 

Amora, após registrar toda a conversa, levantou voo. Pensou que talvez fosse proveitoso também bisbilhotar para onde iria o escudeiro (intrigante aquela conversa de borboletas e mariposas), mas se o fizesse corria o risco de chegar atrasada à sala de aula onde estava Melisma Bomani. Melhor não. Já era o bastante.

Dom Severiano III experimentou seu dia exaurir-se ali. A música que trazia na mente, em torno da qual dançava seu balé particular, estava muda. Sabia o que constituía o silêncio interior, quando ele vinha assim, imediatamente após a música: uma vontade imensa de chorar, que nem sempre se exteriorizava. Quando as lágrimas ficavam dentro da alma, causavam angústia durante vários dias seguidos. A fuga, sempre a mesma, a garrafa de aguardente de cana-de-açúcar, não raro causava uma ressaca que o inutilizava para o despacho diário na administração da cidade. e isso para ele era ótimo.

Foi às janelas, fechou as cortinas vermelhas. Ainda apenas de cuecas, vestiu a murça e o manto imperiais. Sentou-se na cadeira, versão empobrecida do trono reservado apenas para a recepção de autoridades. Ia abaixar a cabeça, preparar seu ambiente íntimo para o provável choro, mas o relatório que Francisco Gomes largou na mesa chamou-lhe a atenção.

Folheou. Leitura rápida. Quando seus olhos se depararam com um capítulo intitulado “Sobre a Possível Filha do Imperador”, leu atentamente.

Apuramos que a principal liderança popular do movimento político instalado em Escrava Anastácia atende pelo nome de Melisma Bomani, uma jovem estudante do ensino médio da rede municipal de ensino. É carismática, inteligente e aguerrida, ou seja, potencialmente perigosa à ordem estabelecida. Sobretudo por ser negra, na medida em que tem condições de estimular um levante, tendo como bandeira o suposto racismo do qual esse pessoal gosta de reclamar.

Os agentes encarregados da investigação conjecturam que o nome da líder, seja, na verdade, falso, com o intuito de ocultar a verdadeira identidade: a filha bastarda do imperador municipal Severiano III, Bárbara Ionice. A confirmação da suspeita demandaria mais um dia de levantamento de dados, com o qual não contamos. Por isso, solicitamos que Sua Majestade exare a necessária ordem de serviço, de modo a ser possível completar o trabalho.

A confirmar-se a suspeita, os agentes entendem que está em jogo não apenas uma controvérsia de caráter político a ameaçar a necessária paz social: também é uma questão familiar e, nesse caso, os agentes aconselham ao imperador convocar a filha ao palácio municipal e, não conseguindo resolver em definitivo o imbróglio familiar, ao menos ponha “panos quentes”.

Evaporado o assombro inicial, pôs-se a rir, orgulhoso da habilidade política da filha. Daria uma imperatriz de primeira grandeza, pensou. Bem que você poderia largar de mão o que chama de “orgulho da raça” e voltar à convivência da Corte, menina. Eu lhe reconheci oficialmente como filha desde o nascimento, mas não há como admiti-la filha da antiga cozinheira do palácio, você há de convir. Por isso, em sua certidão há o nome do pai, mas não o da mãe. As aristocracias municipal, estadual e federal me crucificariam diante do fato de eu ter me deitado com uma serviçal negra. O rei nacional, principalmente. Sua revolta não faz sentido, menina. Tampouco a decisão de morar com sua mãe, nesse bairro malcheiroso. Esqueceu o conforto daqui? Por que não viver no palácio?

E deita a cabeça por cima dos braços, ainda rindo. Esses agentes estão atrasados. Ela é minha filha, não precisa de nenhuma ordem de serviço. E bem antes da necessidade de remover os barracos fétidos nós já conversamos, mas talvez seja mesmo bom tentar outra vez. Tenho uma boa proposta para ela.            

Episódio 1

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