ELIZA – Episódio 2: O COMEÇO DE ALGO ESTRANHO – Lívia Soares

Olá, bem-vindo de volta.

Eu disse que voltaria, não disse? Hoje nós vamos regressar no tempo, onde está marcada a data do início de uma de minhas histórias favoritas, porém sinto informar que não serei seu narrador. Veja, eu aprecio aquelas histórias bem contadas, cheias de perspectiva e, em minha humilde opinião, não há melhor narrador que a testemunha de todos os fatos. Espero que me perdoe se eu deixar a narração para a nossa amiga insone, a partir daqui.

Sendo assim, acomode-se e preste muita atenção. Essa história vai ser longa.  

Não tenho nenhuma razão objetiva para escrever isso, mas sinto que preciso. Então, aqui vai.

O dia 12 de março ainda está nítido em minha memória. Foi quando tudo começou. Pela primeira vez em anos dormi por uma noite inteira. Entrei num sono profundo e cheio de sonhos sobre os quais nem lembro, mas deixaram uma sensação boa que não sei explicar.

Parei de me espreguiçar na cama quando olhei o relógio e já era hora de dar um jeito na minha vida. Com relutância, arrastei-me até o banheiro para tomar um banho bem longo e saí de lá mais acordada do que quando entrei. Foi um daqueles momentos raros de acontecer comigo, acordar sonolenta de manhã depois de uma longa noite de sono. Entrou para a minha coleção.

Enquanto me trocava, senti um cheiro de queimado seguido de um bater de panelas. Corri à cozinha para encontrar vândalos atacando meu fogão. A cadeira da minha mãe estava defronte dele. Percebi duas queimaduras novas em seu pulso. Ainda não sei como consegue se queimar esquentando água. Enquanto isso, Arthur tirava da misteira, com as próprias mãos, dois mistos-quentes queimados. Eu devia ter imaginado: fui a última a acordar, a cama ao lado estava vazia, e isso é sinal de que tem gente se aventurando na cozinha.

— O que vocês dois pensamestar fazendo? — disse, já puxando a cadeirante teimosa para longe do fogão e desligando o fogo.

— Eu estou fazendo meu café — disse entredentes, enquanto dava tapinhas na minha mão para soltar a cadeira —. E eu consigo fazer sozinha.

Seu cabelo estava preso em um coque desajeitado e ela ainda estava de pijamas.

— As queimaduras novas dizem o contrário. Agora vá para o seu lugar na mesa esperar o café da manhã delicioso.

E ela foi, bufando. O truque é fingir estar brava, mas de um jeito engraçado para fazê-la rir. Sempre funciona com gente cabeça-dura.

— E você, mocinho, larga esse pão. Não é assim que se pega.

Ergueu as mãos, rendendo-se, e se juntou à mamãe na mesa. Ela sussurrou alguma coisa em seu ouvido que o fez rir. Imagino tenha sido um dos meus apelidos. Os dois me chamam de Chefe ou General. Sorri com esse pensamento (eu até gosto dessa autoridade).

Terminei de fazer o café e me sentei à mesa. Enquanto comíamos, fiquei esperando o discurso começar (“Eu não preciso de você o tempo todo”; “Eu sou independente”), mas ele não veio. Minha mãe trazia uma expressão pensativa e comeu em um silêncio que só se rompeu quando eu estava lavando as louças.

—  Liz, eu preciso de um livro novo.

Minha mãe trabalha no jornal local como colunista. Escreve sobre livros infantis, e isso é o que não falta na biblioteca onde trabalho. Sou sua fornecedora semanal.

— Você já escreveu sobre o que lhe dei na semana passada?

— Não. Não sei se consigo continuar apenas avaliando livros, sem realmente escrever sobre eles.

— Como assim?

— Está ficando previsível. Escrevo uma sinopse e digo se ele tem influências boas ou ruins para as crianças. Os livros não têm nada de único ou especial: são genéricos.

Esse discurso é novo — pensei.

— Lembra-se de quando escrevi sobre O pequeno príncipe? Foi o melhor texto que já fiz desde que me colocaram nesse cargo. Tem significado e uma mensagem importante para todas as idades.

— Então você quer um livro mais profundo, mas que ainda seja infantil?

— Exatamente.

— Não garanto nada ao nível de O pequeno príncipe, mas vou tentar.

— Eu sei que vai — o sorriso dela era reconfortante porque raro.

Arthur estava arrumando a mochila quando terminei de limpar a pia. Já estava na hora de irmos para a escola, mas antes ajudei minha mãe a tomar banho e a colocar outro pijama. Ela dizia que umas das vantagens de trabalhar em casa é você poder usar a roupa que quiser ou nem usar roupas.

Antes ela escrevia sobre furos de reportagem, manchetes da primeira página, política e blá-blá-blá. Ela é muito talentosa. Esse novo cargo foi um jeito de a empresa dizer “não podemos demiti-la, então vamos rebaixá-la. Ah! E não precisa mais dar as caras porque isso nos lembraria do quão hipócritas somos”. E ela aceitou. Coisa que não faria antes, mas suponho que noticiar a morte do seu próprio marido possa mudar o jeito como você toma decisões. Ela sempre achou estranho falar de si mesma na terceira pessoa, e eu nunca entendi por quê se sujeitou a isso… Mas a vida é assim. Algumas coisas apenas acontecem e você tem duas opções: lidar com isso ou ser carregado pela correnteza de arrependimentos.

13/03

Estava de bom humor, havia dormido bem de novo. Eu e Arthur íamos à escola. Gosto de levá-lo para fora da casa, é quando eu ouço sua voz. Não fala muito lá, talvez tenha medo de dizer algo que chateie a mamãe. No caminho conversamos sobre Naruto, os Jogos Interclasse daquele ano e como ele iria acabar com os meninos do quinto ano, coisas das quais sempre falamos, mas eu estava me sentindo estranha, desconfortável, como se alguém estivesse me vigiando. Mesmo morando perto da escola, sempre pegávamos um caminho mais longo, para termos mais tempo juntos. Não havia ninguém além de nós ali, mesmo assim não conseguia me livrar daquela sensação.

A manhã toda foi estranha, para ser sincera. Depois de deixar meu irmão na escola e seguir sozinha para a minha escola, que ficava na rua de trás, o sentimento de estar sendo observada e os calafrios só cresceram. Era uma presença bizarra e incômoda. Olhei para todos os lados, via apenas adolescentes de uniformes que, assim como eu, estavam indo para a escola.

Entretanto, o pior aconteceu quando eu estava saindo da escola para encontrar o sol de meio dia. Arthur já estava em casa e eu decidi ir pelo caminho mais longo de novo, onde havia mais sombra por causa das árvores que deformavam a calçada.

— Eliza…

Uma voz sussurrou-me ao ouvido. Meu corpo congelou instantaneamente, enquanto um arrepio subia pela espinha. Olhei para trás novamente. Não havia ninguém.

Recomecei minha caminhada, agora mais rápida, tomada pela vontade de correr para longe dali. O sentimento agourento ainda estava lá, ainda me cercava, porém não fugi — isso seria admitir que foi real.

Depois de algumas curvas consegui convencer uma parte de mim de que era apenas o vento. O seu assobio, talvez, mesmo que eu não tenha percebido as correntes de ar passarem pelo meu cabelo? Por mais ridículo que pareça, isso me acalmou. Não havia motivos para ter medo do vento e já conseguia ver minha casa no final da rua.

— Eliza…

Parei de novo. Os calafrios me fizeram tremer. Ouvi cada silaba do meu nome sendo nitidamente pronunciada pelo suposto vento e sua voz rouca. Sentia puro medo enquanto reprisava mentalmente todas as cenas de todos os filmes de terror aos quais já assisti na vida, lembrando-me daquele sentimento ruim ao ver o protagonista ignorando todas as evidências do sobrenatural, só percebendo a verdade quando já era tarde demais. Escrevendo isso agora, tenho esse mesmo sentimento.

Foi o vento, Liz, apenas o vento. Não seja estúpida, você não está num filme —  pensei —. Mesmo assim, peguei impulso e corri, não queria pagar para ver.

Foi um alívio passar pelo portão de casa. Abri o cadeado com mãos desajeitadas e encontrei Arthur brincando na varanda. Recebeu-me com um sorriso acolhedor que me fez sentir protegida. Ele é meu porto seguro. Respirei fundo e entrei pela porta da cozinha. Ao cruzar a sala, vi minha mãe escrevendo na mesinha do computador, um copo fumegante ao lado. Parecia entediada.

Dei-lhe um beijo e fui esquentar o almoço. Enquanto eu estava no fogão ouvi alguém cantarolando atrás de mim. Uma musiquinha familiar. Era a voz de mamãe, contudo parecia mais fina. Perguntei-me o que estaria aprontando — sempre cantarolava quando estava animada ou ansiosa —. Ouvi sua aproximação. Estava perto, muito perto. Podia sentir seu calor. Quando me virei para falar com ela perdi o folego…

Não havia ninguém.   

Na próxima quinzena, o episódio 3.

Episódio 1

      

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